sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Onde nasceu o Brasil?


Onde, como e quando nasceu o Brasil da civilização européia? No instante em que a esquadra de Cabral avistou um “monte mui alto e redondo” silhuetado contra o fulgor do entardecer de 22 de abril de 1500? No momento em que o capitão Nicolau Coelho trocou um sombreiro por um cocar com os indígenas que se reuniram na praia no alvorecer do dia seguinte? Dois meses e 27 dias antes, quando, em 26 de janeiro de 1500, o capitão espanhol Vicente Pinzón avistou terra – possivelmente a ponta de Mucuripe, no Ceará? Ou em algum momento de 1498, quando uma expedição secreta, talvez comandada pelo grande Bartolomeu Dias, teria deixado um degredado (que entrou para a história com o nome de “Bacharel de Cananéia”) no local onde passava a linha de Tordesilhas, no litoral sul de São Paulo? Em todos esses momentos ou nenhum deles?

As fabulações da história, mesmo as que deixam rastros em documento, são sempre múltiplas. Assim, dadas as incertezas que, de uma forma ou de outra, pairam sobre as alternativas acima, não é despropósito acrescentar nova hipótese à lista: o Brasil dos europeus – o Brasil que fala português – nasceu com a instalação da “feitoria do Cabo Frio”, construída em dezembro de 1503 sob a supervisão do florentino Américo Vespúcio.



Sim, porque aquele entreposto para comércio de pau-brasil não apenas foi o primeiro estabelecimento erguido pelos portugueses no Brasil, como, durante mais de 15 anos, foi o único. Mais: a feitoria foi o primeiro núcleo europeu no Novo Mundo ao sul do Equador. Mais ainda: foi na feitoria que os “brasis” (como os portugueses logo passaram a chamar os nativos) travaram contato com os “brasileiros” (como então se denominavam os homens encarregados do tráfico de pau-brasil, ou “trato do pau-de-tinta”).

A feitoria erguida em 1503 marca, portanto, não só o momento, mas o local em que se inicia a ocupação, conquista e colonização do Brasil pelos portugueses. Pode-se mesmo afirmar que ela estabelece o exato lugar onde o Brasil nasceu, simplesmente porque foi a partir das atividades iniciadas naquele pequeno entreposto fortificado que o imenso território da margem ocidental do Atlântico – batizado pelos indígenas de Pindorama (Terra das Palmeiras) – passou a ser chamado de Terra do Pau-Brasil, depois de Terra do Brasil (ou Terra Brasilis) e, por fim, simplesmente de… Brasil.

Mas, às vésperas de se completarem 500 anos de sua construção, o que realmente se sabe sobre a feitoria e os episódios ali desenrolados? Quase nada. Nem mesmo a localização do pequeno fortim onde Pindorama virou Brasil é conhecida, apesar de a historiografia clássica continuar presa – virtualmente encalhada – à tese que Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) lançou há 150 anos.

Os compêndios de história do Brasil repetem, sem exceção, a teoria que Varnhagen propôs em 1854, segundo a qual a feitoria ficava em Cabo Frio, litoral norte do Rio de Janeiro. Hipótese, aliás, aparentemente fácil de comprovar, já que teria sido no próprio Cabo Frio que a famosa nau Bretoa ancorou, em maio de 1511, para tomar sua carga de “lenho tintorial” – conforme registrado no minucioso Regimento que Varnhagen teve o mérito e a sorte de achar em velhos arquivos lusitanos.

De acordo com as indicações deixadas pelo próprio homem encarregado de construí-la, porém, a feitoria ficava “18 graus fora da linha equinocial para o austro e 37 graus contados a partir do meridiano de Lisboa”. A indicação, críptica e um tanto esdrúxula, remete a… Paracatu, interior de Minas Gerais, quase na fronteira com Goiás, a uns 200 quilômetros de Brasília. O descalabro e o despropósito são típicos da pena e do perfil de Américo Vespúcio, o falastrão genial e genioso cujo nome acabou batizando um continente. Como tudo que envolve Vespúcio é invariavelmente dúbio, sinuoso e complexo, melhor começar pelo começo.

Nascido em berço de ouro, na florescente Florença dos Médici, em março de 1451 (ou 1453), em pleno fulgor renascentista, Américo Vespúcio foi contemporâneo, conterrâneo e, em alguns casos, amigo de gênios como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Maquiavel, Ariosto e Botticelli. Desde cedo, se dispôs a “perpetuar a glória” de seu nome e “obter alguma fama após a morte”.

Amparado em uma bem-sucedida carreira no mundo da especulação financeira, mudou-se para Sevilha em 1491 em busca da consagração. Oito anos mais tarde, após ajudar a financiar uma das viagens do genovês Cristóvão Colombo às terras que em breve levariam o próprio nome, Américo zarpou pela primeira vez para o Novo Mundo. A jornada, em companhia do truculento capitão espanhol Alonzo de Hojeda, foi uma revelação.

No início de 1501, sequioso por aventura, Vespúcio transferiu-se para Portugal. A convite do rei dom Manuel, diz ele. A convite do rico mercador florentino radicado em Lisboa Bartolomeu Marchionni, supõem os historiadores. O certo é que, em maio de 1501, lá estava Américo partindo novamente para os trópicos, dessa vez para explorar a terra avistada um ano antes pela esquadra de Cabral. Durante dez meses, ele percorreu a costa brasileira desde o cabo de São Roque (RN) até Cananéia (SP).

Em 1502, ao relatar a viagem, Vespúcio anotou: “Nessa costa não vimos coisa de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil (…) e já tendo estado na viagem bem dez meses, e visto não encontrarmos coisa de metal algum, acordamos nos despedirmos dela”.

O texto selou o destino do Brasil pelos 30 anos seguintes. Com o olhar voltado para o Oriente, e a pimenta a lhe inflamar a imaginação, dom Manuel decidiu “privatizar” a nova colônia: em fins de 1502, firmou contrato com um grupo de mercadores liderados pelo cristão-novo Fernão de Loronha (hoje chamado de Fernando de Noronha), concedendo-lhe por três anos o monopólio da exploração do “lenho tintorial”. Em troca, o consórcio deveria explorar 300 léguas (cerca de 1800 quilômetros) do litoral brasileiro a cada ano, além de “construir uma fortaleza”.

Para cumprir tais obrigações, Loronha enviou nova expedição ao Brasil. E Vespúcio tomou parte nela, sob as ordens de Gonçalo Coelho, o mesmo capitão da armada anterior. A viagem, ocorrida entre 10 de junho de 1503 e 18 de junho de 1504, teve grande importância na história do Brasil. Ainda assim, quase tudo que se sabe sobre ela resume-se ao que Vespúcio escreveu na famosa Lettera. O problema é que, além de desesperadoramente omissa, a Lettera é apócrifa.

Por meio das migalhas de pistas da Lettera, da cartografia do século 16 e de pelo menos um cronista português (Damião de Góis), é possível retraçar a expedição. Seis navios zarparam de Lisboa em 10 de junho de 1503. No dia 10 de agosto, a frota descobriu uma ilha “admirável no meio do mar” – mais tarde, ela seria batizada com o nome do patrão da armada, Fernando de Noronha.

Ali, a nau-capitânia naufragou e a expedição se dispersou. Vespúcio então seguiu para a baía de Todos os Santos, onde permaneceu por dois meses e quatro dias à espera dos navios desgarrados. Como nenhum deles apareceu, ele navegou 260 léguas para o sul, até chegar a um porto onde decidiu construir “a dita fortaleza”.

O fortim-feitoria foi erguido entre novembro de 1503 e abril de 1504, quando Vespúcio partiu para Lisboa deixando 24 homens no primeiro estabelecimento europeu da América do Sul com mantimentos para seis meses, 12 bombardas e outras armas. Nenhum daqueles homens foi visto outra vez: segundo Alonzo de Santa Cruz, cronista da expedição de Sebastião Caboto que passou pelo Brasil em 1526, foram todos mortos pelos indígenas “por causa dos desentendimentos havidos entre eles”.

Mas onde afinal ficava a feitoria? Como o cálculo das longitudes era muito impreciso na época, alguns investigadores levam em conta apenas a latitude citada por Américo: 18 graus sul. A feitoria, assim, ficaria em Caravelas, sul da Bahia. A questão é que Caravelas se localiza atrás dos Abrolhos – conjunto de recifes afiadíssimos, tão nefastos para os navegadores que foram batizados com um alerta: “Abre os olhos!”. Profundos conhecedores das manhas do oceano, os portugueses jamais fariam um entreposto ali.

Como se chegou então a Cabo Frio? Na impossibilidade de se aceitarem as coordenadas de Vespúcio, os cálculos voltaram-se para a distância linear registrada na Lettera: a feitoria se localizava a 260 léguas (cerca de 1.560 quilômetros) da baía de Todos os Santos. Em 1854, Varnhagen, baseado nas informações do Diário da Nau Bretoa (que partiu de Lisboa em fevereiro de 1511 para recolher pau-brasil na feitoria), concluiu que o entreposto de Vespúcio se localizava em Cabo Frio, pois foi para lá que a Bretoa se dirigiu. O grande Alexander von Humboldt o apoiou – e a tese virou fato.

A história deu uma reviravolta em 1971, quando o historiador uruguaio Rolando Trias passou a defender a hipótese de que a menção a Cabo Frio no diário da Bretoa seria apenas uma referência genérica a um acidente geográfico marcante, pois o cabo assinala uma brusca mudança na costa (que, a partir dali, corre de leste para oeste). No século 16, a expressão “Cabo Frio” identificaria assim a porção litorânea que se iniciava no cabo propriamente dito e se prolongava até a baía de Guanabara.

A partir da sugestão de Trias, o historiador Fernando Lourenço Fernandes iniciou investigações que apontam para uma conclusão surpreendente e inovadora. Com base no diário da Bretoa, sabe-se que a feitoria foi construída em uma ilha (como praticamente todas as feitorias portuguesas em ambas as costas africanas, na Índia e nos arredores do mar Vermelho). E que tal ilha, além de grande, possuía pau-brasil e era habitada por nativos aliados aos portugueses e em número suficiente para garantir o apoio logístico e o suprimento de madeira tintorial.

“Pois desde o Cabo Frio até a baía de Guanabara, apenas uma ilha e um grupo de indígenas preenche essas condições”, diz Fernandes. “E as preenche de tal forma que a conclusão se impõe de forma taxativa: a primeira feitoria portuguesa no Brasil ficava na ilha do Gato – hoje, Ilha do Governador, na baía de Guanabara – e os nativos aliados dos lusos que ali viviam eram os temiminós, também chamados de maracajás, ancestrais inimigos dos tamoios, que senhoreavam o Rio de Janeiro e eram aliados dos franceses.”

No século 16, a Ilha do Gato era coberta de florestas, fértil e repleta de fontes. O mar, a terra e os manguezais abasteciam os indígenas, depois os visitantes europeus e, mais tarde, a própria cidade do Rio de Janeiro até o final do século 19. Conforme os estudos de Fernandes, uma das mais notáveis vantagens estratégicas do triângulo formado pela Ilha do Gato e o litoral que se estendia de Inhaúma a Irajá é que ele estava integrado à rede dos peabirus, os antigos caminhos usados pelos caçadores do Pleistoceno – na Pré-História – e depois aproveitados pelos indígenas. Às trilhas antigas se sobrepôs a rede viária da colônia, sucedida pela do reino, pela do império e pelas movimentadas artérias de hoje.

Fernando Fernandes apóia-se também nas pesquisas da arqueóloga Maria Beltrão, que escavou numerosos sítios indígenas na Ilha do Governador. Em um deles, junto à Estação de Rádio da Marinha, na Ponta do Matoso (sítio GB-19), Beltrão identificou “uma aldeia do período correspondente ao primeiro contato entre indígenas e europeus”. “Os materiais encontrados ali”, diz Fernandes, “permitem supor a existência de atividades de carpintaria naval, sugerindo carenagem de embarcações, tanoaria, aparelhamentos; enfim, serviços de apoio típicos de uma feitoria – a feitoria da ilha do Gato.”

Hoje a Ponta do Matoso é ocupada por uma base naval onde fica o depósito de combustíveis da Marinha no Rio de Janeiro. Os grandes tanques de petróleo, os armazéns e os aterros à margem das águas escuras e oleosas da baía de Guanabara desenham uma paisagem industrial destituída de encanto. Trata-se, ainda assim, de uma das porções mais bem preservadas de uma ilha quase que inteiramente degradada.

As várias bases navais e instalações militares espalhadas pela ilha, o aeroporto do Galeão, o fluxo incessante de navios e aviões, os viadutos, pontes e vias expressas – tudo é indício evidente e ruidoso da posição estratégica que a ilha ainda desfruta. Os vestígios da feitoria, bem como os sinais da aldeia do Grande Gato, o “Maracajá” – chefe indígena cuja força e vigor acabaram por batizar toda a tribo –, jazem sobre o peso dos anos e toneladas de entulho em meio a uma paisagem de imperfeições.

Ao que tudo indica, porém, teria sido exatamente ali que a Terra do Brasil começou a se tornar o Brasil de hoje. E se o Brasil de hoje o ignora – e sequer se interessa em esclarecê-lo –, e se já não há nenhum indígena e nem um único pau-brasil na ilha e arredores, nem por isso o cenário é menos revelador. Pelo contrário.

site:http://historia.abril.com.br/cultura/onde-nasceu-brasil-433441.shtml

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