domingo, 14 de novembro de 2010

14 Bis: o dia da consagração


Vinte e um segundos e meio depois, Alberto Santos Dumont estava novamente no chão do Campo de Bagatelle, em Paris, ileso e feliz, pronto para ser carregado nos ombros do conde Jacques Fauré. Naquele 12 de novembro de 1906, às 16h45min, ele tinha acabado de voar uma distância de 220 metros, a seis metros de altura, com o 14 Bis. Era a confirmação de um feito. Alguns dias antes, em 23 de outubro, também em Bagatelle, as centenas de parisienses que assistiram ao vôo de 60 metros daquele aeroplano em forma de pato já não duvidavam de que era possível decolar, voar e pousar uma máquina mais pesada do que ar. Mas Dumont precisava provar aos especialistas da Federação Aeronáutica Internacional, a FAI, que o aparelho não tinha sido beneficiado pelo vento, a única pendência que restara do vôo anterior. Além disso, o brasileiro teria de fazer um vôo completo de cem metros para ganhar o prêmio de 100 mil francos do Aeroclube da França, mais um em sua bem-sucedida carreira de aviador. Ele fez mais: terminou o dia 12 de novembro com os primeiros recordes homologados de distância, altitude e velocidade da aviação.



Enquanto a multidão aplaudia e gritava o nome de Monsieur “Santôs”, o brasileiro ficava mais e mais otimista em relação ao futuro dos aeroplanos. Um turbilhão de lembranças poderia ter voltado à cabeça de Dumont depois das duas exitosas demonstrações do 14 Bis. A história começaria com sua primeira experiência aerostática, realizada como mero passageiro no balão de Alexis Machuron, em 23 de março de 1898. Em cerca de duas horas, ele conhecera Paris a 1,5 mil metros de altura. Naquela viagem de Vaugirard até o castelo de La Ferrière, nas redondezas de Paris, Dumont teve a convicção de que viveria para a aeronáutica. “Tudo se apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo. E tinha subido”, escreveria anos depois. No dia seguinte, ele já estava no ateliê de Machuron e Henri Lachambre para encomendar seu primeiro balão, batizado de Brasil.

Com seis metros de diâmetro e 113 metros cúbicos de hidrogênio, o Brasil era pequeno para os padrões da época, exatamente como Dumont desejava. Foi construído em seda japonesa envernizada e pesava apenas 26,5 quilos. Lachambre e Machuron, que tentaram lhe vender um balão com o dobro do tamanho, temiam que o Brasil não voasse com estabilidade. A partir de 4 de junho, quando ocorreu o vôo inaugural, diversas ascensões sobre Paris indicaram o contrário. O brasileiro tinha talento e parecia predestinado a conquistar os céus. Seu segundo balão, o L’Amérique, era bem maior, com 500 metros cúbicos de gás, pois Dumont estava cansado de voar sozinho. Mas havia um problema. No Brasil e no L’Amérique, quem determinava a direção do passeio era o vento. O balonista não pilotava, apenas acompanhava a boa vontade da natureza. Ainda era pouco para aquele jovem de 1898, que não entendia por que os cientistas tinham abandonado os estudos de dirigibilidade dos balões, até então os únicos artefatos comprovadamente capazes de voar, pelo desenvolvimento de planadores.



Idéia de maluco

Em 12 de novembro de 1906, o barulho da multidão, estimada em mais de mil pessoas, mexeria ainda mais com a memória de Dumont. O relógio insiste em voltar ao passado. Agora que o 14 Bis se tornou o primeiro aeroplano a levantar vôo por meios próprios, sem a impulsão de catapultas ou a ajuda do vento, pode parecer banal cruzar os telhados de Paris a bordo de um balão. No entanto, desde a construção do dirigível Nº 1, em 1898, o brasileiro estudou, errou e acertou muito até dominar completamente a locomoção aérea. O primeiro dirigível já tinha a forma alongada de charuto e um motor a explosão de petróleo, idéia considerada maluca por causa do perigo de as fagulhas da combustão atingirem o gás inflamável. Dumont resolveu o problema ao curvar o tubo do escapamento para baixo. Foi a maior contribuição do Nº 1, que infelizmente sofreu dois acidentes em setembro antes de sair do chão. O Nº 2 não voou, mas serviu para o inventor perceber que aquela quantidade de hidrogênio perto do motor seria um convite ao desastre. Por isso, no Nº 3, já tinha adotado o gás de iluminação, mais leve e barato e menos inflamável.

O dirigível Nº 3 mostrou que o brasileiro estava no caminho certo. Em 13 de novembro de 1899, ele voou sobre os campos de Marte e Bagatelle e o Parc des Princes. Nos meses seguintes, já domando o controle dos balões, Dumont tornou-se conhecido dos parisienses com seus vôos matinais. Definitivamente, era o início dos bons tempos para o instropectivo, mas vaidoso aeronauta, cujas façanhas se tornariam cada vez mais famosas na Europa e no resto do mundo. Nada como as manchetes dos jornais e os olhares de admiração dos franceses. Graças ao prêmio instituído pelo magnata do petróleo Henri Deutsch de La Meurthe, em 24 de março de 1900, a consagração não tardaria. O milionário prometeu 100 mil francos para o primeiro aeronauta que saísse de Saint Cloud, desse uma volta na Torre Eiffel e retornasse ao ponto de partida em 30 minutos, num percurso de 11 quilômetros. Dumont sabia que ninguém estava mais perto de cumprir tal meta do que ele próprio.

Todos que olharam para cima naquela manhã nublada de 12 de julho de 1901 estavam convencidos de que a máquina de Monsieur “Santôs” podia ser dirigida com domínio absoluto de velocidade e direção. Dumont levantou o dirigível no hipódromo de Longchamps, deu pequenas voltas no bairro industrial de Puteaux e retornou depois de um susto com as sirenes das fábricas. Na segunda tentativa daquele dia, ele partiu em direção à Torre Eiffel, indiferente com a névoa sobre a cidade e apesar da parada nos jardins do Hotel Trocadéro para consertar uma das cordas de manobra do leme que havia se rompido. As imagens a seguir ficariam registradas para sempre na memória do inventor: as pessoas acenaram, jogaram os chapéus para cima, gritaram palavras de incentivo e extasiaram-se quando o Nº 5 circunavegou a torre de aço. Ele só voltaria para Longchamps uma hora depois, para o alívio dos mecânicos e do público, que estranhavam a demora e temiam algum acidente.

Vitória e mágoa

Enquanto imaginava a repercussão do feito do 14 Bis em 12 de novembro de 1906, Dumont poderia agradecer ao destino generoso de permanecer vivo ao final de mais uma proeza aérea. Sim, porque o risco de acidentes era real naqueles anos loucos. Remexendo no passado, o brasileiro poderia lembrar que escapara da morte por pouco, pendurado no telhado do Trocadéro depois da explosão do balão do Nº 5, em 8 de agosto de 1901. O dirigível ficou completamente destruído, e Dumont encomendou imediatamente a construção do Nº 6, que estava pronto para sobrevoar Paris em apenas 22 dias. Depois de vários testes e alguns acidentes, o aeronauta sentiu-se preparado para vencer o prêmio Deutsch. Prometeu para o dia 19 de outubro de 1901 e cumpriu.

Com seus 33 metros de comprimento, 622 metros cúbicos de gás, 210 quilos e motor Buchet de quatro cilindros e 20 cavalos de potência, o Nº 6 decolou de Saint Cloud, deu uma volta na Torre Eiffel e retornou ao ponto de partida em 29 minutos e 30 segundos. Mas os mecânicos demoraram para agarrar o dirigível em movimento, e o Nº 6 foi preso ao solo com 40 segundos de atraso. Pelo menos, foi isso que alegaram alguns dos membros da comissão do Aeroclube da França para negar o prêmio a Dumont. A confirmação oficial da vitória só foi dada em 4 de novembro, após muita pressão da opinião pública. Com o calendário em 12 de novembro de 1906, numa noite de festa para a aviação mundial, o piloto do 14 Bis conseguiria recordar que as críticas que ouvira naquela tarde de 1901 incentivaram-no a pedir afastamento do Aeroclube. Desde então, provada a dirigibilidade dos balões, o nome de Santos Dumont seria popular no mundo todo. Ele não precisava engolir em silêncio a traição de alguns colegas.

Antes de investir no mundo dos aeroplanos, Dumont continuou a aprimorar suas criações. Em 1903, três dirigíveis dividiam espaço no hangar de Neuilly Saint James: um potente modelo de corrida (Nº 7), um gigante de transporte para 10 passageiros (Nº 10) e uma de suas obras-primas, o Nº 9, tão pequeno e ágil que foi apelidado de Balladeuse, o nome de um automóvel francês. Com o Balladeuse, Dumont deu sucessivos shows de excentricidade aos parisienses. No dia 23 de junho, a pretexto de tomar o chá da manhã, estacionou o dirigível na calçada em frente a seu apartamento, em plena avenida Champs Elysées. No outro dia, fez o primeiro vôo noturno, com um farol instalado à frente do cesto de vime. Foi ainda no comando do Nº 9 que a cubana Aída d’Acosta tornou-se a primeira mulher aeronauta. Daquele trio de dirigíveis, Dumont lembraria com amargura da sabotagem que sofrera em 1904, nos Estados Unidos. O Nº 7 deveria ter voado na Feira de Saint Louis, mas alguém burlou a segurança e cortou o invólucro do balão ainda na alfândega. O brasileiro teve de voltar precocemente para Paris, indignado e sem demonstrar suas habilidades para os americanos.

O sucesso do 14 Bis era uma recompensa aos três anos posteriores nos quais Dumont ouviu críticas ao potencial dos dirigíveis como meio de transporte, enquanto seus colegas se aventuravam em projetos de aeroplanos. Mesmo fora do Aeroclube da França, o brasileiro mantinha-se informado das experiências e dos progressos recentes. O Nº 11 foi sua primeira tentativa – nunca concluída – de montar um avião, assim como o Nº 12, um helicóptero, cujos estudos não demoraram a ser abandonados. Para se manter na ativa, ele construiu os dirigíveis Nº 13 e Nº 14. O primeiro foi destruído por uma tempestade, em 29 de dezembro de 1904. O segundo obteve relativo sucesso em 1905, depois que Dumont reduziu o comprimento do balão de 41 para 20 metros. Entretanto, o Nº 14 estava condenado a virar coadjuvante dessa história.

Matou a charada

Em julho de 1906, o Nº 14 apareceu acoplado a outra máquina, como mero balão de ensaio para os testes do recém-nascido 14 Bis. Para a surpresa de todos, o jovem que havia comprovado a dirigibilidade dos chamados aeróstatos também construíra seu próprio aeroplano. Como tantos outros gênios da época, Dumont queria resolver a charada do “mais pesado que o ar”. Preso ao dirigível, ele deu alguns saltos no ar com o 14 Bis. Logo abandonou o balão e amarrou o aeroplano num cabo de aço esticado, onde testou os controles do aparelho. Em algumas oportunidades, o avião era puxado pelo jumento Cuigno. Em agosto, ele já tinha percebido que faltava potência no motor Levavasseur, de 24 cavalos, e adotou um Antoinette, de 50 cavalos. Inovação após inovação, Santos Dumont já se sentia confiante para disputar os prêmios Archdeacon, para o primeiro vôo auto-sustentado de 25 metros, e Aeroclube da França, para um percurso de cem metros.

O salto de sete metros no Campo de Bagatelle, em 13 de setembro, não tinha sido exatamente um vôo completo, mas mostrou a Dumont que o 14 Bis chegaria lá. A data escolhida foi 23 de outubro. Além de centenas de curiosos, o próprio desafiante Ernest Archdeacon presenciou o vôo pioneiro de 60 metros. “Se algum dia eu pudesse pecar por inveja, pecaria hoje invejando o meu amigo Santos Dumont”, diria Archdeacon semanas depois, durante o banquete em homenagem ao inventor. Infelizmente, as medições ficaram imprecisas, e a FAI exigiria uma nova experiência. A fama, no entanto, já estava garantida. O tempo avançou ligeiro e logo a cabeça volta para 12 de novembro de 1906. Dumont verifica as avarias na asa direita do 14 Bis, depois do pouso abrupto. Nada de grave. Agora, ele pode repassar mentalmente toda a sensação daquele longo dia em Bagatelle. A confiança era tamanha que ele cedeu a primeira demonstração da manhã ao inesperado concorrente, Louis Blériot, que decidira conquistar o prêmio. Como se sabe, o Blériot fracassou. Para superar o desempenho de 23 de outubro e dar maior controle ao biplano, Dumont implantou dois rudimentares ailerons nas asas. Na primeira tentativa, às 10 horas, o 14 Bis voou 40 metros por cinco segundos. Na segunda, 25 minutos mais tarde, realizou dois vôos, de 40 e 60 metros, finalizados com danos no trem de pouso e no eixo das rodas. Os mecânicos trabalharam no conserto por toda a tarde, até que o avião estivesse pronto para a terceira tentativa, às 16h09min. Dumont acelerou o 14 Bis, voou 50 metros, tocou o solo e subiu novamente, voando outros 82,6 metros em 7,5 segundos, à velocidade média recorde de 41,9 quilômetros por hora. A noite começava a cair sobre Paris. Dumont tinha que ser rápido se quisesse superar os cem metros ainda no dia 12 de novembro. Dessa vez, correria com o 14 Bis contra o vento, diferentemente das três oportunidades anteriores. Às 16h45min, partiu em disparada e poucos metros depois já estava no ar. A multidão delirava e aproximava-se perigosamente da rota do aeroplano. Para evitar um desastre, Dumont aumentou a altitude para seis metros, porém, o aparelho perdeu velocidade e um pouco de equilíbrio. Com habilidade, ele cortou o motor e voltou ao chão do Campo de Bagatelle, 220 metros adiante do ponto de decolagem. Haviam se passado 21,5 segundos. Quando Dumont desceu do cesto do 14 Bis, o conde Jacques Fauré imediatamente colocou o aviador sobre os ombros.

site:http://historia.abril.com.br/ciencia/14-bis-dia-consagracao-434930.shtml

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