sexta-feira, 19 de novembro de 2010
A descoberta da Europa
Numa terra praticamente virgem, homens, mulheres e crianças viviam em bandos de 60 ou 100 indivíduos. Isolados uns dos outros, os maiores podiam chegar a 400 pessoas. Alimentavam-se do que conseguiam com uma agricultura muito rudimentar, da caça e do que simplesmente catavam no mato. Eram seminômades, ou seja, ficavam num lugar apenas tempo suficiente para comer o que estava ao seu alcance, aí levantavam acampamento e iam embora. Suas vilas eram mesmo pouco mais que isso: acampamentos. Não construíam muita coisa além de totens ou amontoados de pedras. Não criaram escrita. Não tinham sistema político e seus líderes eram uma mistura de patriarca com guia espiritual. Viviam como selvagens. E eram europeus.
Estamos em 3000 a.C. e, nessa época, o centro do mundo não é a Europa. A 5 mil quilômetros dali, na Mesopotâmia, região entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, vicejam cidades com mais de 10 mil habitantes. Lá os sumérios desenvolvem leis e códigos para orientar a vida em sociedade. No norte da África, o Baixo e o Alto Egito se unem para formar um dos maiores impérios do mundo antigo, capaz de erguer colossos, como a enorme esfinge de pedra a espiar a planície de Gizé. Eles constróem canais e dominam os ciclos de cheia do rio Nilo. No Extremo Oriente, pequenos reinos vivem sob um só signo: o dragão. A China está prestes a despertar, mas já domina a matemática e a agricultura. Nos três cantos, a pré-história ficou para trás. Eles inventaram a escrita. E com ela preenchem notas fiscais, escrevem livros sagrados, assinam recibos, contratam serviços, registram casamentos e filhos. Fazem cálculos e poesia. Inauguram a história.
E no sul de onde hoje fica a França e ao longo do rio Danúbio, na região que agora chamamos Alemanha, ainda há gente morando em cavernas. Mas esse mundo está prestes a mudar. O agente dessa transformação ainda é um mistério, alvo de muita polêmica entre especialistas, mas definitivamente algo grande aconteceu entre 3500 e 3000 a.C. que transformou a vida na Europa. Algo que causou um salto tecnológico sem precedentes e do qual as marcas se percebem em povos tão diferentes quanto celtas e aqueus, irlandeses e gregos. Segundo o arqueólogo Dinc Sarac, da Universidade de Bilkent, na Turquia, esse algo mais foi a chegada de um povo vindo do leste (de uma região entre a atual Ucrânia e o sul da Rússia), em levas migratórias que durou séculos. “Essa teria sido a ‘descoberta’ da Europa, uma viagem épica só comparável à chegada dos europeus na América, 4 500 mil anos depois”, afirma Sarac, que pesquisa as migrações transcaucasianas e suas influências sobre o povoamento europeu.
Especialistas como Sarac chamam esses descobridores de indo-europeus primitivos e acreditam que, em algum momento entre o quarto e o terceiro milênio antes de Cristo, eles deram início a sucessivas ondas migratórias que os fragmentou em diversos grupos lingüísticos. Uns tomaram o rumo da Índia, influenciando e formando novos povos como os armênios, indo-iranianos, tocarianos e hititas. Outros seguiram para a Europa, onde mais tarde dariam origem aos eslavos, celtas, itálicos, aqueus, jônios, eólios e germânicos. “Eles não formavam uma única sociedade, sólida e organizada, tampouco uma civilização comum. Cada grupo evoluiu de maneira independente, em diferentes épocas e para diferentes lugares, num movimento que chegou a levar séculos”, diz Sarac.
Na verdade, os indo-europeus não tinham sequer um nome para designá-los. O único que receberam surgiu apenas em meados do século 20, quando a antropóloga e arqueólogoa lituana Marjia Gimbutas elaborou uma teoria que deu nova luz à origem dos povos da Europa. Além de algumas hipóteses ainda hoje questionadas pelo meio científico (mas amada pelo neopaganismo new age – religiões que na virada do milênio praticam rituais xamãnicos e adoram entidades da natureza), como a idéia de que se tratava de uma sociedade matriarcal, Gimbutas batizou os primeiros indo-europeus de Cultura Kurgan. Eram assim chamados porque enterravam seus mortos em covas profundas, um método não muito convencional para a época e que caracteriza, segunda ela, esse período e seria um traço comum aos povos que migraram para a Europa nesse período.
Outra coisa em comum é a língua. Em turco, a palavra “kurgan” quer dizer túmulo, sepultura. O mesmo significado que ela tem em eslavo. “De fato, a língua é a chave mais importante nesse tipo de pesquisa que procura revelar a origem tão distante de civilizações tão díspares. Ela mostra que povos que hoje são separados por milhares de quilômetros têm ancestrais comuns. O idioma dos tocarianos (que viveram numa região próxima à China), por exemplo, tem uma forte ligação com o dos germânicos”, diz o antropólogo americano Roger Pearson, editor e fundador do The Journal of Indo-European Studies.
Segundo o antropólogo Jos Stepahnek, checo de nascimento, mas radicado na Universidade de Atenas, na Grécia, essas coincidências lingüísticas são, ainda, um forte indício da presença de um elemento novo, que se impôs e se espalhou por todo o continente.
O invasor
Mas afinal, quem eram os kurgans? Stepahnek diz que eles eram politeístas que acreditavam num deus principal e cultuavam divindades da natureza, como a Lua e a aurora. Não eram tão avançados quanto as civilizações que começavam a se formar nos vales dos rios Nilo, Tigre e Eufrates. Não chegavam nem perto disso. Mas estavam à frente dos povoados que já existiam na Europa. Tinham domesticado o cavalo, usavam carroças de duas ou quatro rodas feitas de madeira maciça, produziam objetos de cobre (facas, adagas e punhais) e possuíam utensílios de ouro e prata, como vasos, contas de colares e anéis.
Diversos animais faziam parte de seu dia-a-dia. Criavam porcos, ovelhas e cabras, mas o cavalo era o mais importante de todos. Além de servirem como meio de transporte, alguns especialistas sugerem que os kurgans sacrificavam cavalos em rituais de sepultamento. Nos sítios arqueológicos da Rússia e da Ucrânia, os ossos dos eqüinos eram os mais numerosos. Mas também foram achados ossos de cervos, alguns dentro dos túmulos de crianças. Sobras de caças? Não exatamente. É certo que os primeiros indo-europeus não foram caçadores e nem grandes agricultores. Então, o que os ossos faziam na tumba dos pequenos kurgans? Provavelmente, não passavam de simples regalos da vida terrena, pois funcionavam como uma espécie de dado em inocentes jogos de apostas.
Para os adultos, os ossos serviam apenas como ornamentos e pequenos utensílios (furadores, talhadeiras e polidores, por exemplo). Suas armas já estavam em outro estágio de evolução, embora o tipo e o grau de desenvolvimento também dividem os pesquisadores. É certo que eles possuíam objetos de cobre e conheciam o estanho, mas ainda não dominavam as técnicas de fundição do bronze, o que só viria a acontecer alguns séculos mais tarde, quando já estavam na Europa. “Os primeiros indo-europeus não eram guerreiros. Além disso, poucos povos dominavam a metalurgia do bronze no terceiro milênio antes de Cristo”, diz o antropólogo italiano Brunetto Chiarelli, professor da Universidade de Firenze.
Para Stepahnek, no entanto, os povos da cultura kurgan já possuíam espadas quando começaram a migrar para lugares mais distantes, levando sua cultura às populações menos avançadas. “Eles conheciam o bronze e produziam armas. Foi assim que resistiram aos conflitos entre vizinhos em seu próprio território, coisa que era muito comum e que, em determinado momento, pode até ter contribuído para que migrassem rumo à Europa”, diz Sarac. “Porém, não foi encontrado nada que indique que a ocupação da Europa tenha sido feita à força. Nada parecido com os indícios de massacres da América. Parece que, embora eles não fossem essencialmente guerreiros – ao contrário, o pastoreio era a principal atividade – sabiam se defender muito bem.”
Além dos vizinhos, eles tinham outro inimigo no Cáucaso: as baixíssimas temperaturas, que chegavam fácil, fácil nos 20 graus negativos. Para eles, qualquer pontinho acima do zero grau já era lucro. Por isso, suas casas tinham fundações de pedra e eram semi-subterrâneas – ou seja, metade embaixo da terra, metade em cima. Nada muito diferente do que acontecia em terras armênias até pouco tempo atrás e que ainda hoje existe no deserto de Gobi. Os kurgans moravam em dois tipos de povoados. Os mais simples não passavam de pequenos vilarejos, sempre ao lado de rios ou córregos, e tinham de dez a 20 casas retangulares, com telhados sustentados por toras finas de madeira. Todas as moradias possuíam pelo menos uma lareira, geralmente feita de pedra. As vilas maiores chegavam a pouco mais de 200 casas e também ficavam perto de rios e florestas. As vilas eram bem protegidas e cercadas por muros de pedra, que podiam chegar a três metros de altura.
Quando chegaram à Europa, os kurgans não mantiveram uma unidade social. Alguns grupos foram rechaçados, outros, a maioria, foram incorporados pelas comunidades locais. Eles trocaram influências e deram origem a outros povos. Alguns se estabeleceram na parte setentrional, outros foram para o norte, uma leva foi para o sul e alguns chegaram até a Grã-Bretanha. Obviamente, esse processo não aconteceu da noite para o dia. Séculos e séculos de migrações e miscigenações se passaram. No meio do caminho, muitos povos resultantes dessa miscigenação simplesmente desapareceram sem deixar qualquer rastro. Outros sofreram tantas mudanças que a principal herança dos antepassados manteve-se presente apenas na língua – e, mesmo assim, com muitas transformações.
Mas essas interações originaram subgrupos que mais tarde atingiram um alto grau de desenvolvimento. Os celtas, por exemplo, estão entre os mais antigos e espalharam-se por boa parte da Europa até serem conquistados pelos romanos. Hábeis na fabricação de objetos de bronze, foram um dos povos europeus mais importantes nos séculos que antecederam a supremacia de Roma. Acredita-se que sua terra de origem seja a região onde hoje ficam a Suíça, Áustria e Alemanha, mas eles chegaram até a Grã-Bretanha e a Península Ibérica.
Outro grupo descendente dos kurgans que viveu dias de glória foram os aqueus. Eles chegaram aos Bálcãs por volta de 2000 a.C. e fundaram diversas cidades, como Micenas e Tirinto. Cinco séculos depois, invadiram a ilha de Creta e assimilaram sua cultura. Aperfeiçoaram sua agricultura, navegação, comércio e construção de armas. Foi aí que nasceu a civilização creto-micênica, que serviu de base para a sociedade grega.
No oriente, os indo-europeus chegaram praticamente até a China e deram origem a povos como os hititas e indo-iranianos. Mas esta já é outra história. Agora, é melhor voltar para o século 21.
site:http://historia.abril.com.br/fatos/descoberta-europa-433867.shtml
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