domingo, 28 de novembro de 2010

Império Árabe: a marcha por Alá


A Europa vivia seus dias mais obscuros, consumida em conflitos sem fim entre reis e senhores cujo poder fragmentado não lhes permitia enxergar (ou ambicionar) nada além de seus próprios feudos. No entorno do Mediterrâneo, no leste do continente, no norte da África, no Egito e na Palestina, os cristãos bizantinos, orgulhosos herdeiros do velho Império Romano, lutavam para manter afastados os persas sassânidas, que controlavam as regiões da Mesopotâmia até a Ásia Central.

Foi quando, na periferia do mundo conhecido no século 7, um homem perto de seus 40 anos, que ganhava a vida conduzindo caravanas pelo deserto, afirmou ter recebido um chamado. O próprio Deus teria ordenado que ele proclamasse pelos quatro cantos que Alá era o único e que ele próprio, Maomé, seria seu mensageiro. Nascia a última grande religião monoteísta. Nascia também um império que em 200 anos se estenderia do sul da Europa até a Índia.

O primeiro passo para isso foi a unificação das tribos da península Arábica sob o poder dos seguidores de Maomé, os muçulmanos. Apenas 20 anos separam a revelação a Maomé da conquista muçulmana de Meca, o centro da vida social e econômica da região. “Tal êxito pode ser explicado pela carismática liderança política e religiosa de Maomé, pela força unificadora de sua mensagem e pela disposição militar de seus seguidores”, escreveu a historiadora Karen Armstrong em A History of God (“Uma história de Deus”, inédito no Brasil).

Na Arábia havia tribos de tradição judaica, cristã, zoroastrista, mas a maioria da população acreditava em uma diversificada gama de deuses e divindades. “As disputas entre clãs envolviam o predomínio comercial, o controle das rotas das caravanas e uma intrincada política de alianças que perpetuava antigas – e, às vezes, imemoriais – rivalidades”, afirma Karen. Os seguidores convertidos de Maomé eram vistos como mais uma dissidência da família. Uns caras estranhos que condenavam a comercialização de objetos religiosos na Caaba (local tradicional de adoração de ídolos, onde ficava uma pedra preta, provavelmente um meteorito, que muitos consideravam sagrada), em Meca. Em 622, cinco anos depois de Maomé começar a converter parentes e amigos da tribo dos coraixitas (a mais importante de Meca), os muçulmanos, que ainda eram poucas dezenas, foram expulsos e seguiram para Yatrhib, que passaria a ser chamada de Madinat al-Nabi (“a cidade do profeta”), ou Medina.

Em 630, Maomé, perto dos 60 anos de idade, voltou a Meca. À força. À frente de um exército de quase 10 mil homens, conquista a cidade sagrada. E se a religião não era a única e talvez nem a principal razão para a briga entre as tribos, a tomada de Meca teve, sim, um significado religioso. Tanto que, quando subjugou Meca, Maomé ordenou a destruição de todos os ídolos da Caaba. E proclamou o Islã (que significa “submissão”) como a verdadeira religião dos árabes. A tomada de Meca deu aos muçulmanos um poder inédito entre os árabes. A notícia de uma nova fé revelada por Deus a um homem, cujos seguidores pregavam a vida em coletividade, a importância da família, da obediência a Deus e à lei, começou a se espalhar.

SUCESSÃO E EXPANSÃO

Com a morte de Maomé, em 632, o sogro e melhor amigo dele, Abu Bakr, virou o chefe da comunidade islâmica – o califa. Abu lutou contra as tribos beduínas que ainda não reconheciam a autoridade política dos muçulmanos e, nos dois anos em que esteve no comando, submeteu os rebeldes com a ajuda de um recém-convertido, o general Khalid ibn al-Walid. Ao final das batalhas, a península Arábica estava unificada. Pela primeria vez, as leis substituíam tradições tribais e uma autoridade única se impunha sobre as demais.

Reunidos em nome do Islã, os exércitos árabes, também de forma inédita, podiam fazer frente aos dois grandes impérios vizinhos. Aqui talvez caiba um parêntese para explicar melhor o que era ser um império por ali, no século 7. Com a escassez de recursos naturais, conquistar territórios e submeter cidades eram formas de aumentar a arrecadação, por meio de impostos ou saques. A principal atividade econômica, o comércio, dependia das cidades e rotas comerciais. Quem as controlasse tinha o poder. E era das regiões conquistadas que vinham os homens para o exército. Pensando nisso, em 634, os árabes investiram contra os bizantinos, conquistando parte da Palestina e Síria, e ocuparam a Mesopotâmia (atual Iraque), submetendo os persas. Embora na maioria das cidades não tenha sido necessário desembainhar a espada – muitos governantes se renderam e evitaram a destruição em troca do pagamento de impostos –, estima-se que perto de 20 mil pessoas morreram nas invasões.

O avanço muçulmano nas terras dos vizinhos seria ainda mais avassalador – e sangrento – durante o califado seguinte, de Omar. Em 636, os bizantinos pararam de recuar e entregar suas cidades. E enfrentaram os árabes. Na batalha do rio Yarmuk, na Síria, quase 200 mil soldados se enfrentaram. Mais de 70 mil morreram. Uma a uma, as cidades bizantinas caíram diante do exército muçulmano, que havia se tornado a maior força militar da época.

“Os árabes não eram uma horda tribal, mas uma força organizada, cujos líderes, como o general Khalid ibn al-Walid, haviam adquirido experiência militar a serviço dos bizantinos”, diz o historiador libanês Albert Hourani em Uma História dos Povos Árabes. Além disso, os soldados estavam bem treinados pelas guerras de conquista na península e enfrentavam inimigos desmotivados e em crise. “As guerras entre bizantinos e sassânidas, que já duravam quatro séculos, enfraqueceram ambos, mas principalmente os sassânidas, que foram o maior império de seu tempo e desapareceram depois de menos de seis anos de lutas contra os árabes.”

Para o historiador Carl W. Ernst, especialista em Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, não é lá muito preciso dizer que a expansão do Islã foi feita pela espada. “O avanço militar foi avassalador, mas a aceitação da religião muçulmana pelos povos submetidos foi mais lenta e nunca total”, diz Ernst.

“Parece mais provável que o combustível para o avanço tenham sido as novas conquistas materiais e territoriais, e não espirituais. Houve ação militar e conquista no início da propagação do Islã, mas o objetivo não foi a conversão, e sim a expansão de um novo Estado”, afirma Fred Donner, professor de História do Oriente Médio na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Os povos conquistados geralmente não eram solicitados a se converter, a menos que não fossem monoteístas. Mas a maioria – na Síria, Iraque, Irã e Egito – já era, pois seguia o cristianismo, o judaísmo e o zoroastrismo”, diz Donner.

Se os habitantes dos novos territórios dominados pelos árabes não eram obrigados a se converter, quem o fizesse levava vantagens. Quem não era muçulmano tinha de pagar a jizya, um imposto sobre a renda. “Levou muitos anos até que as populações conquistadas das províncias do Oriente Médio se tornassem muçulmanas. O processo de conversão foi muito lento e ocorreu por causa das vantagens econômicas e do convívio social,” diz Donner.

NASCE O IMPÉRIO

Em 644, Omar foi assassinado e Otman assumiu. O terceiro califa continuou a expansão militar, realizou as primeiras expedições marítimas no Mediterrâneo, conquistou o Chipre, submeteu de vez os sassânidas e invadiu o Egito. Outra grande obra de seu governo foi organizar, pela primeira vez, os ensinamentos transmitidos por Maomé – que até então eram passados pela tradição oral – em um livro, o Alcorão. Internamente, porém, Otman não manteve unida a comunidade que, com cada vez mais territórios, dividiu-se entre interesses tribais. Otman nomeou seus familiares para cargos importantes – como o primo Muawiya, escolhido para governar a Síria – e era acusado de privilegiar o clã dos Omíadas (poderosa família de Meca cujo líder, Abu Sufyan, havia sido inimigo de Maomé). Otman foi assassinado em 656.

Sua morte gerou confusão em torno de quem deveria ser o novo califa. Os três primeiros sucessores haviam sido escolhidos entre os companheiros e amigos de Maomé, e, apesar de desavenças, aceitos pela comunidade sem maiores problemas. O quarto, parecia lógico, deveria ser Ali, que além de ser um dos mais fiéis seguidores de Maomé ainda vivos, era seu primo e genro, casado com Fátima, e pai dos únicos netos do profeta. Mas, dessa vez, a linha sucessória não seria aceita. Entre seus opositores estavam Aisha, uma das viúvas de Maomé, e dois de seus velhos amigos, Talha e Zubair, que acusavam Ali de ter matado Otman e defendiam que Muawiya fosse o próximo califa. Ali assumiu o poder, o que iniciou uma guerra entre as duas facções. Em 657 elas se enfrentaram na batalha de Siffin, mas nenhuma conseguiu vencer a outra. Diante do impasse, Ali concordou com uma arbitragem externa, mas acabou afastado e Muawiya foi nomeado califa. Uma parte dos apoiadores de Ali, no entanto, permaneceu fiel a ele e às suas pretensões. Foram chamados de xiitas (shi’at ‘Ali, ou os “partidários de Ali” em árabe).

Em 660, Muawiya é reconhecido califa na Síria, Palestina, Egito e Hejaz (atual Arábia Saudita). Mas os xiitas ainda proclamavam a legitimidade de Ali no Iraque e no Irã. Em 661, Ali foi assassinado e tornou-se um mártir entre os xiitas.

Sob o comando dos Omíadas, dinastia criada a partir de Muawiya, a expansão continuou. No Oriente, os árabes chegaram ao Sind, atual Paquistão. Lá, as cadeias montanhosas foram mais eficazes para deter o avanço muçulmano do que qualquer exército. Entre 674 e 678, os exércitos muçulmanos cercaram Constantinopla, a capital bizantina, às margens do Mediterrâneo. Era a primeira vez que chegavam tão perto da Europa. Era o primeiro de uma série de conflitos que ainda duraria oito séculos quando, enfim, a cidade cairia sob as tropas turcas muçulmanas, em 1453, na data que marca o fim da Idade Média.

ISLÃ NA EUROPA

De um lado, centenas de cavaleiros com suas lanças compridas, protegidos por armaduras de metal. Atrás deles, milhares a pé empunhavam pesadas espadas de aço. De outro lado, homens vestidos em trapos carregavam punhais e espadas mais leves e finas. Os primeiros, membros do mais poderoso exército de seus dias: o árabe. Os segundos, os francos, além de contarem com armamento insuficiente e poucos cavalos, tinham pelo menos três vezes menos homens. Mas em 10 de outubro de 732, o futuro da Europa cristã estava nas mãos daqueles homens enfileirados que esperavam seu destino, próximo a Poitiers, no sul da França

Depois de serem barrados em Constantinopla, os árabes haviam chegado à Europa por outra rota. Abrindo caminho pelo norte da África, onde em menos de duas décadas submeteram praticamente todas as tribos, em 711 um poderoso exército muçulmano atravessou as águas do Mediterrâneo em Gibraltar, no sul da península Ibérica, e em apenas sete anos derrotaram os feudos medievais, dominando quase toda a Ibéria e pedaços da França. Criaram o Al-Andalus, um império árabe na Europa.

O avanço parecia irresistível, até aquela manhã de 732, quando Abd Al-Rahman, o líder andaluz, investia contra o sudoeste da França pela quarta vez. A Europa Ocidental estava prestes a ser totalmente subjugada pelos muçulmanos. Até que uma batalha contra os francos, na cidade de Poitiers, terminaria impondo uma barreira para a expansão do Islã.

Apesar de os muçulmanos terem acumulado mais vitórias em combates e estarem melhor equipados, os francos estavam em casa, tinham bom conhecimento do terreno e um líder com fama de durão, Carlos Martel. Os fatos que decidiram a batalha ainda são controversos (leia quadro abaixo). Sabe-se, por relatos de ambos os lados, que, em meio à luta, houve uma debandada geral dos muçulmanos. Historiadores, como Trevor Ling, autor de A History of Religion East and West (“Uma história da religião oriental e ocidental”, sem versão em português), acreditam que a luta já não era um consenso entre os líderes árabes e que, após a morte de Al-Rahman na batalha, alguns comandantes preferiram se retirar, o que teria levado a uma reação em cadeia. Outra versão, citada pelo historiador inglês David Nicolle no Atlas Histórico del Mundo Islámico (“Atlas histórico do mundo islâmico”, inédito no Brasil), sugere que a falsa notícia de que o acampamento árabe, onde estavam guardados os saques de Bordeaux, estava sendo atacado levou à retirada desordenada.

ERA DE OURO

Na metade do século 8, o império já havia se tornado grande demais para resistir às divisões políticas. O maior racha aconteceu em Damasco. Os seguidores de Abu Muslim derrotaram os omíadas, em 750, e fundaram uma nova dinastia, a abássida. “A ascensão dos abássidas contou com o apoio maciço de povos não-árabes, principalmente persas islamizados, que haviam sofrido com a política discriminatória dos omíadas”, diz Mamede Mustafa Jarouche, professor de Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo. “Ao mesmo tempo, houve a incorporação de vários elementos das culturas persa e indiana, entre outras. Mas a língua árabe passou a desempenhar papel mais importante.” O árabe era o principal meio de expressão literária e da burocracia governamental e, claro, de difusão da religião, por meio do Alcorão.

Em 751, os árabes derrotam os chineses da dinastia Tang na batalha do rio Talas, próximo ao grande lago Balkash, no atual Cazaquistão, pelo controle da Ásia Central. Os prisioneiros de guerra chineses introduziram no mundo árabe as técnicas da fabricação de papel. “A criação de estradas, moedas e leis, aliada à disseminação do idioma árabe, permitiu a circulação de cultura, literatura e conhecimento entre os povos da China e da Europa”, afirma o historiador Marshall G.S. Hodgson, no livro The Venture of Islam (“A aventura do Islã”, inédito no Brasil). O árabe tornou-se uma língua internacional – era possível ler na China trovas escritas na Espanha Ibérica. Em árabe, a matemática indiana podia ser escrita e entendida em Alexandria, no Egito. O momento de relativa paz interna fez do período abássida a chamada “era de ouro” do Império Árabe.

A disseminação da língua árabe e a tolerância cultural também foram fundamentais para acelerar a penetração da religião muçulmana que, nessa fase, foi muito mais expressiva. “No fim do período omíada, menos de 10% da população do Irã e do Iraque, Síria e Egito, Tunísia e Espanha era muçulmana”, afirma Albert Hourani. “No fim do quarto século islâmico (10) o quadro mudou. A proporção se inverteu e apenas 10% não eram islâmicos.”

Nos séculos seguintes, a expansão do grande império foi muito além dos povos árabes. Na Pérsia, na Ásia Central, no Egito, no Iraque e na Índia surgiriam novas dinastias que lutariam pelo predomínio dentro do mundo muçulmano. “Os árabes deram lugar a outros povos muçulmanos que, a partir do século 10, passaram a ocupar seus territórios e sucedê-los como dominadores políticos e culturais. A expansão muçulmana nunca deixou de acontecer e, mesmo hoje, se mantém”, escreve Hodgson. A cultura dos árabes ainda iria muito além da Espanha e da Índia e, mesmo depois de superados, seu legado passaria a ser indiscutível, mesmo entre seus sucessores turcos, curdos, persas e otomanos. E o principal desses legados era justamente a religião do profeta: o Islã.

site:http://historia.abril.com.br/religiao/imperio-arabe-marcha-ala-434759.shtml

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