sábado, 13 de novembro de 2010

Ieyasu Tokugawa, o destemido senhor da guerra


De cada lado do desfiladeiro há mais de 80 mil homens. Alguns enchem seus mosquetes com pólvora e chumbo, outros desatam suas longas espadas da cintura. Todos vestem armaduras parecidas e apenas pedaços de papel colorido amarrados na bainha da espada ou da roupa os diferenciam em meio ao forte nevoeiro que desce com o nascer do dia. Com um sinal de sua bandeira, o velho senhor da guerra Ieyasu Tokugawa sinaliza a seus homens que é hora de derramar o sangue daqueles que o desafiaram. A mais decisiva das batalhas travadas em solo japonês, enfim, começa.

Era 21 de outubro de 1600, o dia em que um Japão unificado começou a emergir. A batalha de Sekigahara, que causou mais de 30 mil mortes, pôs fim às disputas entre senhores feudais. A partir dali, todos obedeceriam a um só líder: o xogum Tokugawa, o mais poderoso de todos os detentores do título até então.



Desde o século 12, o único poder reconhecido na maior parte do Japão era exercido por uma espécie de governo militar, o bakufu. O líder máximo desse sistema era o xogum, um título equivalente ao de um generalíssimo, ou seja o supremo comandante. Seu poder advinha diretamente da força de seu exército e da capacidade que ele tinha de manter a paz ou de promover a guerra com os feudos descontentes. Nessa época, o imperador era uma figura eminentemente simbólica e exercia apenas um papel religioso. Segundo a religião xintoísta, ele era o próprio deus na terra, mas, na prática, ele não apitava nada na vida política ou militar do Japão.

Quem detinha o poder de fato eram os daimiôs, que controlavam grandes propriedades de terra e, com isso, a vida econômica e social de camponeses que compunham a maioria da população japonesa. Com o tempo, o posto de xogum, que era ratificado pelo próprio imperador, também se transformou num título apenas simbólico, já os daimiôs que não contavam com a proteção do imperador e do xogum, acabavam criando seu próprio exército e nomeando seu próprio general. “Sem autoridade central, o país formado por mais de 250 superfeudos era palco de lutas encarniçadas entre os clãs”, diz Henry Smith, professor de história do Japão da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. “A partir do século 14, a disputa pelo poder se tornou ainda mais intensa, e o país mergulhou em uma guerra civil sem precedentes.”

Pais da pátria

A instabilidade durou quase 200 anos, com a alternância de xoguns no poder. A coisa começou a mudar em 1560, quando o general Oda Nobunaga desafiou o poder do xogum Imagawa Yoshimoto. Para apoiar Nobunaga vários daimiôs enviaram seus samurais – guerreiros que atuavam como guarda-costas e eventual tropa de choque dos donos de terra. Entre os novos aliados de Nobunaga estava o jovem Ieyasu. Filho de um pequeno daimiô, ele passara boa parte de sua infância como refém de Yoshimoto. A prática, comum na época, era uma forma do xogum garantir a lealdade dos daimiôs. Afinal, quem se metesse a besta estaria condenando o próprio filho. Com a morte daquele que o mantinha preso, Ieyasu se juntou ao mais temido exército de samurais da época.

As traições eram tão comuns quanto as demonstrações de lealdade eram radicais. Nobunaga exigiu que Ieyasu ordenasse a morte da própria esposa e seu filho mais velho, suspeitos de conspirarem contra seu clã. Segundo Robert Ooms, historiador da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos, Ieyasu não teve dúvidas, ou pelo menos não as demonstrou. Ele cumpriu as ordens, manteve a confiança do líder e tornou-se um de seus comandantes mais próximos.

Em 1566, tanta dedicação foi recompensada e Ieyasu recebeu terras e se tornou um poderoso daimiô. “Nessa época, adotou o nome Tokugawa, o que significa que ele estava fundando um novo clã, uma honra reservada a poucos”, diz o professor Luke Roberts, do departamento de história da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, Estados Unidos.

Para Robert Ooms, Oda Nobunaga foi o primeiro dos xoguns a desejar a unificação do poder no Japão. “Com a chegada de estrangeiros – portugueses em 1543 – e em seguida holandeses e ingleses, e o desenvolvimento do comércio, passou a ser interessante a existência de um poder central.” Em 15 anos, Nobunaga conquistou metade do país, mas não teve tempo de concluir o que começou. Atingido durante uma rebelião, ele preferiu cometer suicídio a morrer vítima de um ferimento causado pelo inimigo. “Segundo o código de honra da época, a morte auto-infligida era muito mais nobre”, afirma Ooms.

Nada como a sucessão de um líder morto para dividir antigos aliados. Depois de uma série de batalhas, Toyotomi Hideyoshi, um dos samurais de Nobunaga ascendeu ao poder, e Ieyasu passou a ser visto como um opositor. E, como de praxe, tudo acabou num sangrento combate. “Não está claro quem tomou a iniciativa. Se Ieyasu tentava tomar o poder, ou se Hideyoshi visava eliminar um possível concorrente”, afirma Ooms. O certo é que Ieyasu foi derrotado, jurou fidelidade a Hideyoshi e enviou a ele um de seus filhos como garantia. Em seguida, Hideyoshi enviou Ieyasu para Kanto, uma região recém-conquistada ao norte. O líder Tokugawa partiu com mala e cuia e centenas de vassalos em direção a Edo, um vilarejo que, mais tarde, ganharia o nome de Tóquio.

Seguidor dos planos de unificação de Nobunaga, Hideyoshi é considerado por alguns especialistas como o primeiro a exercer o poder central no Japão. Além disso, ele foi o pai das iniciativas imperialistas do país. “Livre de inimigos internos, Hideyoshi queria atravessar o sudeste da Ásia, conquistar a China e ir até a Índia e a Pérsia”, afirma o historiador George Sansom, no clássico A History of Japan (inédito em português). Em duas tentativas de guerrear fora de seu território, em 1592 e 1597, no entanto, suas tropas não conseguiram ir além da Coréia. Decepcionado, o todo poderoso líder samurai morreu no mesmo ano da segunda expedição.

Mas antes disso ele havia feito seus comandantes jurarem fidelidade ao filho, o pequeno Hideyori. Após a morte do líder formou-se um comitê de regentes para governar até que Hideyori crescesse. Um deles, no entanto, não pretendia esperar: Ieyasu Tokugawa.

Sekigahara

Desde a morte de Hideyoshi, dois grupos se enfrentaram numa delicada disputa pelo poder. Se o cenário parece conhecido é porque o conflito entre os Tokugawa e os Toyotomi serviu de inspiração para o escritor James Clavell criar o romance Shogun, que fez tremendo sucesso na década de 1980.

Ieyasu Tokugawa era o lado mais fraco nesse confronto. Ele contava com o apoio de alguns daimiôs, mas sabia que eles eram pessoas conservadoras e que tendiam a apoiar o herdeiro legítimo e, portanto, desconfiava da lealdade da maioria. Enquanto isso, seu rival, Mitsunari Ishida, tinha o apoio de um número maior de daimiôs e o peso da autoridade dos Toyotomi.

Em agosto, manobras e intrigas chegaram ao fim. Kagekatsu Uyesugi, membro do Conselho de Regentes e partidário dos Toyotomi, reuniu um exército de 60 mil homens e partiu para enfrentar Tokugawa. Ao mesmo tempo, Ishida entrou em ação e armou um exército de samurais com o objetivo de cercar Tokugawa em Edo.

A derrota parecia inevitável. Mas Ieyasu tinha seus próprios planos. Embora a maior parte de seu exército permanecesse reunida em Edo, ele havia se instalado, junto com um grupo de samurais experientes, numa fortaleza em Fushimi, situada entre Edo e o inimigo que avançava. “A resistência em Fushimi visava retardar o inevitável”, diz Roberts. “Tokugawa sabia que logo teria de enfrentar Ishida e os demais regentes, mas o que ele queria é que a batalha ocorresse em algum local do distrito de Kinki, uma região repleta de altas montanhas, florestas e pequenas vilas controladas por daimiôs independentes.”

A estratégia era arriscada e para lá de ousada. Em Kinki viviam os grupos de shinobi-nin – terroristas, espiões e mercenários, também chamados de ninjas, cuja habilidade nas artes marciais já naquele tempo se tornara lendária. Tokugawa sabia que, embora fossem poucos e difíceis de atrair, valia a pena arriscar. Para convencê-los a lutar, ele tinha um trunfo. Entre seus comandantes estava Munenori Yagyu, cujo pai era um dos daimiôs mais influentes da região de Kinki. Tokugawa convocou-o a interceder junto ao pai para que esse pedisse o apoio dos ninjas. A missão diplomática do jovem oficial foi definitiva para a história do Japão.

O primeiro indício de que o jogo estava mudando em favor de Tokugawa foi o sucesso da resistência em Fushimi. Reforçado pelos ninjas de Kinki, os samurais de Tokugawa retiveram Ishida por semanas. Quando ele finalmente tomou o castelo e partiu para o cerco a Tokugawa, já era tarde demais. As tropas de Uyesugi haviam se desmobilizado. “Acredito que houve negociações entre Ieyasu e Uyesugi, para que este não se unisse a Ishida, o que foi definitivo para o resultado da batalha que se seguiria”, afirma Ooms. Ishida apressou o passo e levou seu exército para a entrada de um vale em forma de “U”, onde se reuniu com outros aliados. Embora suas forças agora estivessem em minoria – 90 mil soldados contra os 100 mil de Tokugawa – ele ainda tinha uma chance: esperaria que Tokugawa atacasse, para então cercá-lo e atacá-lo por ambos os lados.

Na noite da véspera da grande batalha, choveu forte no vale de Sekigahara. Em suas barracas os samurais verificavam as armaduras, preocupados com a lama que deixaria cada movimento muito mais difícil. Pela manhã ainda garoava quando as tropas de Tokugawa marcharam em direção a Sekigahara, imersos num denso nevoeiro. Só se ouviam os passos na lama e o ranger das armaduras ensopadas.

A batalha começou quando os samurais de Ishida e Tokugawa deram de cara uns com os outros no meio do nevoeiro. “Sekigahara entrou para a história como uma batalha épica, mas para quem estava lá deve ter parecido apenas um grande tumulto”, diz Judy Price, do departamento de história da Ásia, da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. Partes do mesmo exército se atacaram, algumas se perderam e outras nem chegaram a entrar em ação. Foi o caso de mosqueteiros, que, impedidos de recarregar seus rifles, por causa da pólvora úmida, fugiram ou se misturaram a lanceiros e espadachins, todos tentando se manter de pé, no meio de um campo de batalha que os cavalos haviam transformado num lamaçal.

Mesmo com toda confusão, ao espectador que pudesse ver a cena inteira, ainda pareceria que Ishida sairia vitorioso. Tokugawa havia reunido seus samurais na entrada do vale e Ishida tinha recuado, aguardando apenas que seu aliado Hideaki Kobayakawa atacasse o adversário pelas costas. Mas em vez de se lançar contra Tokugawa, Kobayakawa uniu-se a ele. No fim do dia, Ishida estava morto e sua tropa fugira.

A vitória levou Ieyasu Tokugawa ao poder. E antes que os corpos fossem retirados dos campos de Sekigahara seu destino como sei-i-tai shogum, o governante militar do país, já estava traçado. Ao contrário de seus antecessores, Ieyasu trabalhou rápido para consolidar seu poder. Apesar de ter transferido oficialmente o título de xogum para seu filho Hidetada, em 1605, o velho guerreiro ainda não iria descansar. Hideyori, o herdeiro de seu maior inimigo havia crescido e desafiava a continuidade de sua dinastia. Em 1614, Ieyasu liderou dois ataques à fortaleza de Osaka. No segundo, capturou Hideyori e obrigou-o a cometer suicídio. Disposto a eliminar qualquer oposição, Ieyasu Tokugawa cortou a cabeça do filho de Hideyori e do neto de Hideyoshi, uma criança de 4 anos.

Em 1616, Ieyasu morreu. Seu poder, no entanto, seria passado a seus descendentes, um a um, por 265 anos, num período conhecido como “Idade da Paz Ininterrupta”.

site:http://historia.abril.com.br/gente/ieyasu-tokugawa-destemido-senhor-guerra-434166.shtml

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