segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Glória feita de sangue
"Vendo tantas cidades e vilas situadas na água e outras tantas aldeias em terra firme, fomos tomados de admiração. Por causa das grandes torres e pirâmides que se elevavam da água, alguns soldados chegavam mesmo a se perguntar se aquilo não era um sonho." As palavras são de Bernal Diaz del Castillo, escrivão do conquistador espanhol Hernán Cortéz, que chegou à região da atual Cidade do México em novembro de 1519. O deslumbre é justificado. Tenochtitlán, a capital do Império Asteca, era uma metrópole de 15 quilômetros quadrados, incrustada num lago, interligada às margens por calçadas artificiais e entrecortada por uma rede de canais e aquedutos. Não fossem os habitantes tão estranhos aos olhos europeus, a cidade se confundiria com Veneza - só que mais bonita e higiênica.
Cortéz e seus homens foram bem recebidos. Montezuma II, o imperador dos astecas, não sabia o que pensar daquele capitão de cabelos dourados montado em um cavalo, animal nunca antes visto por ali. Poderia ser o deus Quetzalcoatl que retornava à Terra. Na dúvida, achou sábio fazer um agrado. Entre pedras preciosas e iguarias, o imperador ordenou que seus mensageiros presenteassem o estrangeiro com um banquete de carne humana. Os espanhóis desconfiaram do cheiro forte de sangue e descobriram, horrorizados, o que estavam comendo. Vomitaram imediatamente e não aceitaram mais nenhum alimento. Era um mau sinal. Fossem eles deuses ou não, as coisas não seriam nada fáceis para os astecas. Dois anos depois, sua civilização estava dissolvida. Desaparecera tão rápido quanto havia se desenvolvido.
Longa peregrinação
Os astecas não surgiram na América Central. Sua história tradicional diz que eles vieram de Aztlán, um lugar ao norte. A localização exata é um mistério. "Aztlán poderia estar em qualquer lugar, de Washington ao noroeste mexicano. Nahuatl, a língua falada pelos astecas, é aparentada com o idioma apache", diz Eduardo Natalino dos Santos, historiador do Centro de Estudos Mesoamericanos e Andinos da Universidade de São Paulo. Não se sabe quando e onde eles se organizaram, mas é certo que se tratava de um povo seminômade, caçador e coletor, que utilizava arco e flecha, desconhecia a agricultura e a escrita, e cultuava seus próprios deuses. Os demais povos da região os chamavam de "chichimecas", que na língua nahuatl significa "bárbaros".
A partir de 1168, os astecas deixaram Aztlán e começaram uma marcha às cegas, em busca de um sinal que indicasse onde eles deveriam se estabelecer. "Quase nada sabemos sobre a organização da tribo em marcha. Os manuscritos históricos retratam-na guiada pelos sacerdotes. Eles conduziam sobre os ombros um envoltório com objetos relacionados ao deus Huitzilopochtli, divindade solar representada por um colibri", afirma Jacques Soustelle no livro A Civilização Asteca. Certo dia, surgiu o sinal tão esperado: no lugar em que encontrassem uma águia com uma serpente na boca, sobre um cacto, em cima de uma pedra, no meio de uma ilhota, eles deveriam erigir sua civilização. A imagem já se banalizou: está na atual bandeira do México, e o nome do país surgiu durante a longa peregrinação. "Eles eram chamados astecas porque vieram de Aztlán, ou mexicas, porque durante a marcha os deuses os batizaram assim, em honra a um sacerdote", diz o arqueólogo Eduardo Matos Moctezuma, descendente direto do imperador asteca.
Em 1325, os mexicas se depararam com a ilha, a águia, a cena completa. Quando começaram a construir sua própria civilização, estavam no México central, uma região habitada por centenas de populações diferentes nos séculos anteriores (veja o quadro). Mil anos antes, florescera no planalto central Teotihuacán, enquanto os maias surgiam ao sul e os zapotecas mais a oeste. Com o declínio da cidade, a região foi gradativamente ocupada por 28 cidades-Estado que se revezavam em hegemonia e subordinação. A partir do século 14, os astecas, que peregrinavam desde o norte distante, tentaram se estabelecer no local. Mas foram aos poucos enxotados até a região pantanosa do lago Texcoco, onde nenhum outro povo arriscara viver. Lá eles fundaram sua civilização.
A primeira construção teria sido um singelo templo de madeira, ofertado ao deus Huitzilopochtli. "Os astecas dessa época levavam uma vida anfíbia, com suas pirogas e redes, subsistindo graças à pesca e à caça de pássaros aquáticos. Modestas aldeias estendiam-se sobre as ilhotas", escreve Soustelle. Apesar da humildade, eles desejavam ter um soberano nobre, e assim, em 1375, entronizaram Tlatoani, descendente de uma dinastia tolteca (povo que os astecas admiravam). Esse rei e seus sucessores não conseguiram escapar ao controle do monarca da cidade vizinha de Azcapotzalco, que dominava a região. Até que um líder chamado Itzcoatl iniciou um movimento de resistência. Aliado ao herdeiro legítimo do trono da região de Texcoco, ele venceu e destruiu Azcapotzalco. Da tríplice aliança entre esses dois líderes e o rei da cidade vizinha de Tlacopan, começava, enfim, o Império Asteca.
Ao morrer, em 1440, Itzcoatl havia reescrito a história de seu povo. "Seu reinado promoveu uma reforma da religião e da ideologia", diz a arqueóloga Leila Maria França, da USP. Os cinco imperadores que o sucederam preocuparam-se em dominar novos territórios. O passo seguinte, dado em 1472, foi transformar antigos parceiros em vassalos. Quando os espanhóis chegaram, em 1519, o império tinha 38 províncias e o número total de habitantes chegava a 1 milhão, sendo que 300 mil viviam na maior cidade, Tenochtitlán. "Os astecas então adotaram a vida urbana. A capital estendia-se por milhares de hectares de ilhas e terras pantanosas, que 200 anos de labuta gigantesca haviam transformado em uma rede geométrica de canais, ruas e praças, verdadeira Veneza ligada às margens por três passagens elevadas", afirma Jacques Soustelle.
O povo asteca ganhou novos hábitos com rapidez impressionante. Seus cidadãos agora tinham livros, escolas, ofícios variados e uma vida ritualística intensa. Liam e escreviam, tinham uma compreensão evoluída de astronomia e uma cidade arquitetonicamente sustentável. Adotaram um calendário solar e outro para a agricultura - praticada nas chinampas, plataformas artificiais de terra, feitas com estacas e lodo do lago. Assim, a área de plantio não dependia do regime de chuvas.
Mas uma prática se manteve: fazer sacrifícios humanos aos deuses em cerimônias grandiosas. Sacrificava-se para que a colheita fosse boa, para que a terra não tremesse, para agradar aos deuses. Certa vez, 48 crianças foram mortas durante uma cerimônia para que chovesse. Os tipos de sacrifício variavam bastante. Era comum esfolar um cativo vivo e vestir sua pele. Também se jogava a vítima no fogo ou arrancava-se seu coração antes que ela morresse. "O coração pulsante era símbolo de vida e energia, da qual a deidade e o Cosmos seriam revestidos", diz a arqueóloga Leila Maria França.
A modalidade mais comum era deitar o prisioneiro de peito aberto sobre uma rocha, arrancar o coração com uma faca, guardá-lo num recipiente e jogar o corpo pirâmide abaixo. "Os donos dos cativos mortos comiam os restos mortais em banquetes, no meio da multidão", afirma França. Havia um motivo para tudo isso: de acordo com a cosmologia do povo mesoamericano, os deuses se sacrificaram para que o mundo surgisse, e era necessário repetir o gesto para mantê-lo.
Todos os cidadãos tinham compromissos religiosos, mas as obrigações para com o imperador variavam de acordo com a casta. A sociedade era estratificada. A maioria da população prestava serviço militar, pagava impostos, era responsável pela conservação dos caminhos e pela construção das pirâmides e diques. Abaixo dessa classe, só os escravos. Não eram cidadãos, mas moravam, comiam e se vestiam como qualquer um e eram bem tratados por seus senhores.
A classe dos artesãos era extremamente conceituada na sociedade asteca. Eles faziam joias e eram bem remunerados. Depois vinham os poderosos comerciantes, que detinham o monopólio das mercadorias de luxo. Viajavam em caravanas para trocar produtos e acabavam lutando contra povos hostis de outras cidades-Estado, o que agradava ao imperador. Por fim, havia a nobreza e os sacerdotes. Eram isentos de impostos e levavam uma vida luxuosa sustentada pelo Estado. As posições não eram estanques. Qualquer cidadão destacado poderia ocupar postos importantes no governo.
Poligamia e chocolate
Havia dois tipos de escola. Uma mais popular, frequentada pelas camadas baixas, em que o conteúdo era praticamente militar, e outra elitizada, em que se ensinava o sistema de escrita dos códices e os calendários, e se preparavam os jovens para o sacerdócio. As meninas aprendiam a cantar e dançar. Com apenas 10 anos de idade, já estavam casadas e passariam a vida cuidando das atividades domésticas. Os homens podiam ter várias esposas. Mas, se antes de casar fossem pegos bêbados ou correndo atrás de mulheres, eram atirados vivos ao fogo.
As bebidas mais consumidas eram o pulque, feito da fermentação de um cacto chamado agave, e o chocolate frio - uma batida espumosa de pó de cacau, com grãos de milho e água. Para estabelecer conexão com os outros seres do Universo, eles comiam cogumelos alucinógenos e peiote, uma espécie de cacto.
Os camponeses viviam em casas singelas, com paredes de barro e teto de palha. Já os templos e palácios eram suntuosos. O Templo Maior, dedicado a Huitzilopochtli, deus da guerra, e Tlaloc, deus da chuva, tinha 27 metros de altura e 90 de largura. O palácio de Montezuma também era impressionante. Soustelle descreve a construção: "Situado em um quadrilátero de 200 metros de lado, apresentava-se como um vasto conjunto de edifícios com um ou dois andares, agrupados em torno de jardins interiores. Ali se penetrava tanto por terra quanto por água. Era composto de apartamentos, salas de reunião, tribunais, depósitos do tesouro, escritório dos coletores imperiais, salas de música e dança, viveiro de pássaros tropicais, um jardim zoológico repleto de jaguares, pumas, aves de rapina e serpentes com cauda de chocalho".
Futebol profético
De maneira geral, todos os astecas tinham um padrão de higiene bastante elevado para os costumes europeus da época. Eles inclusive limpavam os dentes com carvão e sal para prevenir as cáries. Para passar o tempo, jogavam pelotas. O jogo consistia em rebater uma bola de borracha com as coxas e quadris, tentando acertar um aro que ficava em cima de um campo comprido e retangular. O esporte era praticado por todas as civilizações na mesoamérica, com regras diferentes. "Quando o chefe de Texcoco profetizou que estrangeiros governariam o México, Montezuma II jogou pelotas com ele para provar que ele estava errado. Perdeu o jogo por 3 a 2 e deixou o campo amedrontado. Dois anos depois chegaram os espanhóis", diz John Clare em Astecas, Vida Cotidiana.
Outros presságios atormentaram o imperador. Segundo códices escritos depois da conquista, os astecas tomaram conhecimento da vinda dos europeus por meio de oito agouros funestos: templos que se incendiaram sozinhos, raios que caíram sobre pirâmides, cometas e inundações, entre outros. Quando soube da chegada da grande nau que flutuava no mar, Montezuma II mandou mensageiros. As notícias seguintes o afligiram ainda mais. Após a tentativa fracassada de agradar com carne humana, as relações só se complicaram.
Cortéz ficou sabendo de todo o ouro que reluzia na capital mexica e marchou para lá, causando carnificinas tão sangrentas quanto os sacrifícios dos nativos. Aliados aos tlaxcaltecas, povo que nunca se submeteu ao domínio asteca, os espanhóis traziam consigo a varíola. Chegando a Tenochtitlán, o imperador os recebeu cordialmente. Montezuma II acabou preso, teve seu tesouro saqueado e ainda ficou com fama de traidor.
Durante um ritual a Huitzilopochtli, que acontecia com a conivência dos espanhóis, todos os nativos presentes foram presos e assassinados. Cortéz não estava. Mas, na chamada Noite Triste, de 30 de junho de 1520, ele liderou seus soldados numa guerra contra os mexicas. Pólvora contra lanças de obsidiana, canhões contra flechas. Os astecas teriam vencido, não fossem as forças tlaxcaltecas que vieram em socorro dos estrangeiros. Dias depois, Montezuma morreu. Não se sabe se pela mão dos espanhóis ou abatido por uma pedra arremessada por alguém da multidão asteca.
Cuhautemoc, o segundo sucessor (e que viraria herói mexicano), repeliu outros 20 assaltos. Rendeu-se em 13 de agosto de 1521. Com ele, caía todo o Império Asteca. Os espanhóis ergueram suas igrejas sobre os templos, usando as pedras originais. Destruíram as imagens dos deuses e proibiram cultos, oferendas e sacrifícios. E o povo, resignado, recorreu ao sincretismo religioso para poder adorar, em segredo, seus deuses do passado.
site:http://historia.abril.com.br/cultura/gloria-feita-sangue-565233.shtml
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