segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Bárbaros: o mundo em transição


No momento em que, em 370, os hunos, liderados por Átila, decidiram cavalgar das estepes asiáticas em direção a oeste, a Europa começou a ficar de pernas para o ar. Apenas 106 anos depois, caía por terra o Império Romano do Ocidente. Tinha início um processo militar, político e social, que transformou para sempre os rumos da História. Furiosos, destemidos, violentos, os hunos começaram a pressionar alguns povos, como ostrogodos e vândalos, que estavam em seu caminho. Para escapar da fúria de Átila e seus guerreiros, essas tribos também passaram a procurar recantos mais seguros onde pudessem se estabelecer. Tarefa nada fácil, já que naquela época o mundo era dominado por uma potência militar, política e econômica: o Império Romano. Com cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados, o território latino se estendia de Portugal ao Iraque, do norte da África à Inglaterra. Apesar de alguns conflitos aqui e ali, havia um razoável equilíbrio entre os romanos e os povos por eles dominados. Em alguns casos, até postos do próprio exército imperial eram ocupados pelos germânicos, povo originário de uma região além das fronteiras do império.

A erupção dos hunos detonou um processo irreversível. Era o início de uma era que entrou para a História com o nome de invasões bárbaras. Tradicionalmente esse período abrange os séculos 5 e 6, embora tenham ocorrido invasões de povos bárbaros antes e depois disso, como se verá a seguir. Nessa época, o Império Romano desabou como um castelo de cartas e foi invadido por forasteiros de todos os cantos. “Germânicos de quase todas as tribos marcharam em massa para dentro do império. Foi uma verdadeira inundação humana”, conta o historiador Voltaire Schilling. Mas, afinal, quem eram esses povos que desafiaram o poder romano? Por que passaram a ser conhecidos como bárbaros? De onde vinham?



Bárbaros também por não tomar vinho

O conceito de povos bárbaros tem raízes na Grécia Antiga, cerca de dez ou 12 séculos antes de Cristo. Os gregos já haviam sistematizado a noção de barbaroi, termo que designava todo aquele que não falava grego. Essa visão egocêntrica do estrangeiro sempre foi própria do homem e a história da relação entre os povos muitas vezes é a história da percepção que ele tem do outro. Segundo o historiador búlgaro Tzvetan Todorov, o outro pode ser qualquer coisa: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres... Mas também pode estar numa outra sociedade, que será próxima ou distante segundo nossos valores culturais, morais e históricos. “Os outros podem ser desconhecidos, estrangeiros, cuja língua e costumes não compreendemos, tão estrangeiros que chegamos a hesitar em reconhecer que somos da mesma espécie”, relata Todorov em sua obra Conquista da América. Esse conceito é tão próprio ao ser humano que até culturas distantes da grega tratavam do assunto de modo semelhante. Para os astecas, de língua nahuatl, por exemplo, o estrangeiro era chamado de popoloca.

O conceito cunhado pelos gregos atravessou os séculos e foi parar em Roma. Não por acaso, já que Roma, desde o século 5 a.C., importou da Grécia valores culturais, políticos, referências arquitetônicas e artísticas. Assim, para os romanos, os germânicos eram os “outros”, incivilizados, diferentes, habitantes daquelas regiões que ficavam do outro lado das margens dos rios Reno e Danúbio, fronteiras naturais do poder romano na Europa. Ou seja, aqueles que tinham hábitos e costumes não românicos. “Até o fato de os germânicos não tomarem vinho era um argumento”, comenta a professora Norma Mendes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como se vê, o termo bárbaro carregava também um boa dose de preconceito. Além do mais, era muito genérico e se aplicava a dezenas de povos nômades, bem diferentes entre si. Alguns tinham raízes na Ásia, como hunos e alanos. Outros vinham do norte da Europa, como ostrogodos, visigodos, borguinhões, vândalos, francos, lombardos e suevos. A relação é extensa. Havia quase uma centena de povos diferentes. E muitos, como os gépidos, os marcomanos e os lígios, nunca chegaram a constituir um Estado significativo.

Em geral esses povos não românicos não sabiam ler ou escrever (suas tradições, em geral, eram passadas de forma oral através das gerações) e praticavam religiões pagãs primitivas. Embora não tivessem um desenvolvimento avançado, não eram tão selvagens quanto supunham os romanos. Os germânicos praticavam agricultura e pecuária e introduziram na Europa artigos como peles, calças e vestimentas mais adequadas ao frio, esquis, o uso do sabão e da manteiga, a fabricação de tonéis, além do cultivo de novos cereais, como a aveia e o centeio. Alguns bárbaros como Teodorico, rei ostrogodo, foram educados nas melhores escolas de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente. Outros, como os hunos, mostraram aos europeus a importância da cavalaria e do arco e flecha curto.

Embora quase todos fossem nômades e procurassem novos espaços para se estabelecer (devido à falta de terras boas ou desequilíbrios populacionais), nem todos se expandiram no mesmo momento histórico e, com o passar do tempo, uns até subjugaram outros. Alguns deles sobreviveram. Outros foram varridos do mapa para sempre. Quanto à estrutura social, de maneira geral os germânicos eram ligados a valores familiares. Após o casamento, era comum se manterem fiéis por toda a vida. Seus hábitos eram também muito mais regrados. Banquetes e orgias pagãs, sodomias e outras perversões comuns em Roma e Grécia eram desconhecidos para a maioria deles. Na questão militar, em geral eram governados por um chefe de guerra ou tribal, que, dependendo do povo, era chamado de rei. Era assim com francos, vândalos, borguinhões, ostrogodos e visigodos. Abaixo na hierarquia social vinham os guerreiros, que juravam fidelidade ao chefe da tribo. Em seguida apareciam mercadores e súditos, obrigados a servir ao rei. Por último os escravos, geralmente cativos de guerras. Mas era possível a um guerreiro ascender ao topo da pirâmide e se tornar um líder tribal. As experiências militares variavam de acordo com o povo. Os suevos, por exemplo, eram sedentários, conciliadores e buscavam um lugar para se fixarem. Já os vândalos, brutais, militarizados e só se interessavam pela pilhagem.

Entre essas etnias tão diversas havia um contato estreito. Não raro dois ou mais povos se uniam e formavam uma confederação. Suevos, alanos e vândalos, por exemplo, cruzaram o rio Danúbio em 406 e migraram para a Espanha. Depois se dividiram. Os suevos fundaram um reino na atual Galícia, os alanos ficaram com a Lusitânia (atual Portugal) e os vândalos se fixaram na península Ibérica. Essa relação próxima fazia com que diferentes tribos se influenciassem mutuamente. Em termos físicos também havia grandes diferenças. Os hunos tinham traços asiáticos. Lombardos, ostrogodos, anglo-saxões e francos, a pele clara e olhos azuis.

Dos dórios aos mongóis

Embora o auge das invasões tenha ocorrido entre os séculos 5 e 6, não significa que, antes ou depois, não houvesse guerras entre povos nômades em expansão que se lançaram contra os romanos. Houve, e não foram poucas. Por isso, tomamos a liberdade de reverter o conceito clássico dessas invasões e o ampliamos para outras épocas históricas. Assim, as invasões bárbaras, em um sentido mais amplo, começam no século 12 a.C., quando os dórios, originários do norte da Europa, entraram em conflito com os micênicos, povo de língua grega instalado na Ática e no Peloponeso desde 2000 a.C., onde haviam criado uma civilização avançada. Os dórios eram nômades de língua estranha, não conheciam a escrita nem dominavam o comércio. A superioridade dórica no uso de utensílios e armas de ferro sobre o inimigo, que ainda permanecia na idade do bronze, falou mais alto. Por fim, o ciclo se fecha no século 13, com as hordas de mongóis comandadas por Gêngis Khan, que venceram os tártaros, invadiram a China e, em 1207, tinham toda a Mongólia a seus pés.

Nesses 25 séculos que separaram a primeira da última invasão, o mundo se transformou radicalmente. Roma, que no século 2 era a capital do maior império do mundo, passou a ser alvo de ataques bárbaros. Começou com os celtas (povo não romano que habitava a Europa desde 1500 a.C.), comandados por Brennus, em 390 a.C. Em 410 foi a vez de Alarico arrasar com a cidade. Outro saque histórico se deu em 455, sob o comando de Genserico. O auge da presença bárbara em Roma se deu em 476 (data que, para muitos historiadores, marca o fim do império), com a coroação de Odoacro, primeiro imperador romano de origem germânica.

Na verdade, romanos e germânicos nunca foram totalmente estranhos entre si. Desde o século 2, missionários do império procuravam introduzir o cristianismo entre os bárbaros e era cada vez mais normal que povos germânicos atravessassem os postos fronteiriços para viver como agricultores em terras romanas ou servir como mercenários nas famosas legiões romanas. “Também era muito comum o comércio entre eles”, revela Norma Mendes, da UFRJ. “Havia até mesmo uma parte da Germânia que pertencia ao Império Romano, cuja cidade mais importante era Colônia, na atual Alemanha”, acrescenta o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Essa relativa harmonia, no entanto, estava com os dias contados.

Aproveitando-se do colapso que se abateu sobre o império, em pouco mais de 100 anos diversas tribos o retalharam e formaram os primeiros reinos germânicos na Europa e na África. Mesmo assim, influências romanas persistiram nos territórios ocupados, formando um amálgama com o conhecimento dos invasores. Ainda que, a princípio, parecesse o fim do mundo antigo, as mudanças não foram tão drásticas. “Ao mesmo tempo que os ataques foram os mais destrutivos assaltos dos povos germânicos contra o Ocidente, tiveram também conseqüências conservadoras para o legado latino”, escreve o historiador inglês Perry Anderson em Passagens da Antigüidade ao Feudalismo. Segundo ele, apesar de a unidade do império ter sido fragmentada, os bárbaros não foram capazes de substituir o sistema político porque havia uma grande diferença entre as duas civilizações. “Além disso, nessa primeira onda de migrações, o local de instalação final de cada povo estava muito longe de seu ponto de partida. Os visigodos viajaram dos Bálcãs à Espanha, os ostrogodos da Ucrânia à Itália e os vândalos, da Silésia à Tunísia. Como resultado, os colonos germânicos no sul da França, na Itália, na Espanha e no norte da África estavam limitados em número e não recebiam reforços por meio de migração natural”, conclui.

Apesar dessa movimentação toda, a quantidade de bárbaros ainda não era muito expressiva. Segundo escreve o historiador Josiah C. Russell em Population in Europe 500-1500 (sem tradução em português), estima-se que, no ano 500, a população bárbara era de 1 milhão de pessoas, frente a um total de 16 milhões romanos. Jamais houve bárbaros suficientes para ocupar tantas terras. Por questão de segurança, os invasores se mantiveram próximos e raramente se misturavam. “Com o passar do tempo, porém, acabaram se casando com a população nativa e adotando a língua local, de origem latina”, diz Funari.

Depois da primeira leva, houve outras ondas sucessivas de invasores. Como os lombardos, vindos da Áustria, que, entre 572 e 650, conquistaram o norte da Itália e depois expulsaram os bizantinos da região, tornando-se senhores da península. Mas desapareceram em 773, quando Carlos Magno incorporou seus territórios ao reino franco. Antes, no século 5, os anglo-saxões, que viviam nas costas do norte da Alemanha, realizaram uma lenta invasão da Inglaterra. No século 7 haviam fundado sete reinos diferentes na ilha. No 8, só restavam três. E no 9 só havia um, o Wessex, graças a Alfredo, o Grande, que unificou todos eles. A migração anglo-saxônica foi um fenômeno determinante para a história da Inglaterra, assim como a invasão dos francos na Gália foi para a francesa. Lá eles construíram um reino duradouro sob a dinastia dos merovíngios. Em 497 eles se converteram ao cristianismo e expandiram ainda mais seus domínios.

Devido a partilhas e rivalidades familiares, entraram no século 6 divididos em três reinos: Austrásia, Nêustria e Borgonha. Em 567, as rainhas Brunilda, da Austrásia, e Fredegunda, da Nêustria, levaram os francos a uma guerra civil que durou até 613, quando Clotário II, bisneto de Fredegunda, se tornou rei de todos os francos. O caminho estava aberto para um governo tranqüilo dos merovíngios. Mas o nascimento de uma nova fé mudou o destino da França.

Lago muçulmano

Ao morrer, em 632, o profeta Maomé deixou uma nova religião e uma Arábia unificada. O avanço árabe foi rápido. A Síria foi invadida em 636. O Iraque anexado em 637, o Egito em 642 e o Irã em 651. “Os árabes não eram uma horda tribal, mas uma força militar organizada com membros que adquiriram experiência militar, servindo no exército dos grandes impérios bizantino e persa”, escreve Albert Hourani, em Uma História dos Povos Árabes. Já para o historiador Henri Pirenne, a expansão árabe destruiu o mundo antigo. “De repente, o culto ao profeta Maomé substituiu a fé cristã. A língua árabe tomou o lugar do grego e do latim. O Mediterrâneo virou em sua maior parte um lago muçulmano”, diz. Os árabes só foram barrados em 732 pelo franco Carlos Martel em Poitiers, a 330 km de Paris.

A entrada em cena do Império Muçulmano mexeu com o mundo ocidental, que, entre outras questões, teve de começar a se preocupar em prover sua própria subsistência. Sumiram o papiro, a seda, o óleo, as especiarias, o ouro... Saíam de cena os merovíngios, baseados no sul, e ganhava destaque a dinastia carolíngia, originária do norte, que alcançou o ápice com Carlos Magno. A força do novo império agora estava em Paris. O reino franco era um reino terrestre. É fácil perceber o declínio marítimo ao observar que as frotas improvisadas dos francos não foram capazes de deter os ataques vikings, que começavam a atormentar a Europa.

Os últimos bárbaros

Por volta do ano 800, viviam na Escandinávia três povos: suecos, dinamarqueses e noruegueses. Eram aparentados, mas divididos entre si em várias tribos. Segundo Johannes Brondsted, autor de Os Vikings, História de uma Fascinante Civilização, o comério, a sede de pirataria e motivos políticos levaram os vikings a atacar a Europa. A primeira investida ocorreu em 793 com a pilhagem do mosteiro da ilha de Lindisfarne, na costa inglesa. Houve também tentativas de colonização. Durante dois séculos eles organizaram expedições ao norte da França, Inglaterra, Irlanda, Groenlândia e Islândia, chegando até as costas da América do Norte, por volta do ano 1000, com o navegador Leif Ericsson.

Enquanto isso, surgia em cena o primeiro foco de nacionalismo eslavo na Europa Central. No século 7 o deslocamento dos germânicos para o Ocidente criou um vazio no qual se estenderam os eslavos, que ocuparam a Europa Central, a bacia do Danúbio, os Bálcãs e o mar Báltico. Não se tratava bem de conquista, mas de ocupação de território. Em 680, um grupo de búlgaros comandados por Asparuch instalou-se entre o Danúbio e os Bálcãs, conquistando os eslavos lá estabelecidos. Na mesma época, um líder chamado Samo fundou outro estado, dos Alpes até o Báltico, constituído por tchecos, morávios e eslovacos. Ao contrário dos germânicos, os eslavos permaneceram fora da órbita do mundo civilizado. Quando se estabeleceram na Europa Central, já encontraram territórios tão “desromanizados” que não receberam influência latina.

Em 882 foi a vez dos russos fundarem um reino no Báltico. O surgimento do estado russo foi resultado da expansão dos vikings suecos sobre os eslavos orientais que habitavam a região. Os escandinavos, ainda que em número reduzido, estabeleceram ali uma rota comercial com Bizâncio e a Ásia Menor e, por volta do ano 1000, estavam eslavizados e convertidos ao cristianismo. Por fim, na metade do século 10, sobre a Europa flagelada pelos vikings veio ainda uma onda de ataques de cavaleiros provenientes das estepes asiáticas. Os húngaros, sob a liderança de Arpad, estabeleceram-se na Panônia (atual Hungria) em 896. De lá realizaram expedições de pilhagem pelo continente, da Dinamarca à Espanha, até se converterem ao cristianismo em 1001. Depois de o Império Romano do Ocidente ter sido totalmente destroçado, estavam fincadas as raízes de um novo período que estava por vir. Mas isso é outra história.

site:http://historia.abril.com.br/politica/barbaros-mundo-transicao-434552.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário

- É proibido a postagem de links para sites cujo conteúdo não seja relacionado ao blog.

- É proibida toda e qualquer discriminação contra outro usuário do blog.

- Posts que tenham a intenção de spam serão apagados.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...