domingo, 5 de dezembro de 2010

A partilha da Palestina


Os senhores todos sabem como votar. Os que são a favor dirão sim; os que são contra dirão não; e os que se abstêm sempre sabem o que dizer.” Passava das 16 horas no dia 29 de novembro de 1947, em Lake Sucess, perto de Nova York, quando o presidente da Assembléia Geral da ONU, o gaúcho Oswaldo Aranha, abriu a votação que decidiria a sorte de uma região de pouco mais de 20 mil km2 no Oriente Médio. Os 56 países presentes deveriam votar a favor ou contra a partilha da Palestina em dois Estados: um árabe, outro judeu.

Não havia televisão, muito menos internet. Era grudando o ouvido no rádio que os habitantes do Mandato Britânico na Palestina acompanhavam a votação. Em função do fuso horário, já era noite em Jerusalém, Belém, Tzova, Ramallah e demais cidades da região. Mas quem conseguia dormir com uma questão dessas sendo decidida? A Assembléia Geral analisava a terceira proposta feita pelo Comitê ad hoc – ou seja, a partilha política. A região contava com uma população de 1,3 milhão de árabes e cerca de 600 mil judeus. Jerusalém não ficaria com judeus nem árabes: teria a tutela da ONU. O futuro Estado judeu corresponderia a 55% do território. Ao Estado árabe caberiam 45% da área.

A tensão era grande. O salão em que a votação ocorreria estava lotado de espectadores. Os corredores, também repletos. Cerca de 10 mil pessoas haviam solicitado passes sem obtê-los. E mil curiosos espremiam-se próximos ao portão. Todos os olhos voltavam-se ao órgão criado depois da Segunda Guerra Mundial. A questão palestina era das mais espinhosas. Aquela era apenas a segunda assembléia geral da ONU, entidade sucessora da finada Liga das Nações, que havia falhado em sua missão de promover a paz.

“Uma das funções da recém-criada entidade era decidir o que fazer com os Mandatos – territórios sob a tutela de outras nações, uma figura jurídica surgida após a Primeira Guerra Mundial”, diz Gilberto Sarfadi, professor de Relações Internacionais da FAAP. Tanto árabes quanto judeus eram favoráveis ao fim do Mandato Britânico. Ambos reclamavam da administração inglesa, mas reagiam a ela de formas diferentes. Os árabes preferiram não criar um órgão governamental nacional de caráter autônomo interno, pois isso seria reconhecer o Mandato. Os judeus, ao contrário, criaram a Agência Judaica e, por meio dela, negociavam com os ingleses. Também elegeram uma assembléia com representantes de diversas correntes políticas (Asefat Hanivharim) e tinham um conselho nacional (Vaad Haleumi) para solucionar problemas administrativos. E ainda contavam com uma bem organizada força defensiva, a Haganah. Assim, ao montar a estrutura de Estado, os judeus garantiam um dos elementos que a Organização Sionista Mundial defendia como essencial para a criação de um Estado. Os outros eram terra e povo.

Potências lado a lado

Um dos focos de desentendimento entre judeus e autoridades britânicas era justamente a limitação ao aumento da massa populacional judaica, imposta por meio de restrições à imigração. Ainda assim, de janeiro de 1919 até maio de 1948, estima-se que mais de 400 mil judeus tenham migrado para a região. O número é maior ainda se for considerado em termos proporcionais. Ao ser criado o Estado de Israel, somente 35% de sua população era oriunda da Palestina, enquanto 55% eram europeus de origem e 10%, provenientes da Ásia ou da África.

Para analisar o que fazer na transição do Mandato Britânico foi criada, em maio de 1947, a Comissão Especial da ONU para a Palestina. Três meses depois, um relatório assinado por sete dos onze membros defendia a partilha em dois Estados. A Agência Judaica concordou com a decisão: ainda que a divisão não fosse exatamente como desejava boa parte dos sionistas, a criação de um Estado judeu seria legitimada internacionalmente. Os países árabes presentes eram contra a criação dos dois Estados justamente por isso – não queriam a legitimação de um Estado judeu na região. Criou-se, então, o Comitê ad hoc, para decidir o futuro da Palestina.

Logo em seguida, foi declarado um apoio essencial para os sionistas. Em 11 de outubro, os EUA informaram que eram favoráveis à partilha. Dois dias depois, a URSS garantiu seu apoio. Isso mesmo. As duas superpotências inimigas estavam do mesmo lado. Alguns pesquisadores alegam que essa foi a grande surpresa da votação, mas os líderes sionistas sabiam que, para legitimar a criação do Estado, era necessário o apoio – ou pelo menos a anuência – das duas forças mais poderosas do mundo naquele momento.

Os historiadores têm explicações distintas para o apoio soviético. A versão que costuma ganhar mais adeptos é a fundamentada na chamada ideologia-pragmática. Muitos dos líderes sionistas eram socialistas. Os kibutzim (fazendas coletivas) eram muito estimulados entre os imigrantes judeus na Palestina e funcionavam em um sistema que poderia ser considerado comunista. Assim, não seria absurdo pensar em um alinhamento do futuro Estado judeu com a URSS. Naquele momento, ainda não havia a proximidade que, cerca de dez anos depois, se tornaria bastante estreita entre EUA e Israel.

A conquista do voto norte-americano foi, aliás, um trabalho de longo prazo. Os líderes sionistas sabiam que o apoio dos EUA era essencial para fundação do Estado judeu. Por isso, uma estratégia para conquistar o apoio norte-americano foi traçada muito antes do nascimento da ONU, com a criação, em 1939, do American Zionist Emergency Council (Azec). A idéia, em primeiro lugar, era conquistar os próprios sionistas e demais judeus americanos. Reuniões, conversas, encontros, manifestações, comitês... Todo esforço possível era feito. Ano a ano, a causa ia ganhando simpatia. Depois de vender a causa aos 2,5 milhões judeus americanos, era a hora de trabalhar no Congresso e ganhar o apoio de personalidades públicas. Muitos judeus ocupavam posições intelectuais e econômicas importantes. Somando isso a uma extrema organização, a pressão pública se fazia ouvir de longe. Diante desse quadro, o presidente Harry Truman não teve escolha: declarou-se favorável à criação de um Estado judeu.

Jogadas de bastidor

No dia 25 de novembro, foi aprovado o terceiro projeto apresentado pelo Comitê ad hoc. A Palestina seria dividida em oito partes. Três delas seriam destinadas ao Estado judeu. Outras três, ao Estado árabe. Um oitavo do território – Jaffa, na perto de Tel-Aviv – seria um enclave árabe em solo judeu. E a última parte seria Jerusalém, controlada por um regimento internacional especial (veja mapa ao lado). Apesar da divisão política, o comitê previa uma unidade econômica, com taxas alfandegárias em comum e a mesma moeda. Cada Estado, porém, teria um banco central independente e controle fiscal próprio.

Levada à votação, o resultado foi 25 votos a favor, 13 contra e 17 abstenções (dois países ausentaram-se). Finalmente, uma resolução estava formatada, pronta para ir à Assembléia Geral. Porém, seriam necessários dois terços dos votos para sua aprovação. Ou seja: caso o placar se repetisse, a partilha não sairia do papel. Os judeus precisavam de um tempo extra para conseguir mais adeptos. Alguns embaixadores simpáticos à causa sionista subiram à tribuna e fizeram discursos longos, tentando retardar o pleito. Oswaldo Aranha, também pró-partilha, encerrou a sessão assim que o sol se pôs. O feriado de Ação de Graças, logo em seguida, garantiu o tempo a mais de que as lideranças judaicas precisavam para conquistar novos votos. O pleito decisivo só ocorreu quatro dias depois, em 29 de novembro – um intervalo fundamental para os interesses sionistas em jogo. Ao perceberem a virada, representantes de países árabes apresentaram uma proposta defendendo uma Palestina unitária, com garantia de autonomia local para a minoria judaica. Mas era tarde demais. A partilha seria votada e os judeus, agora, estavam dando as cartas.

Os países eram chamados, em inglês, por ordem alfabética. Logo depois da abstenção do Grã-Bretanha, veio o “sim” soviético. Em seguida, outro “sim”, o dos EUA. O único apoio que os judeus perderam no intervalo entre as duas votações foi o do Chile – que havia declarado ser a favor da partilha, mas na hora H se absteve. Em compensação, o Haiti, que antes se abstivera, mudou de idéia por influência americana. No total, nove países trocaram de lado e votaram favoravelmente à divisão da Palestina: Bélgica, Filipinas, França, Holanda, Libéria, Luxemburgo, Nova Zelândia e Paraguai (veja quadro na página ao lado). Desta vez, houve apenas um ausente: a Tailândia. O embaixador tailandês abandonou a assembléia naquela manhã, alegando problemas em seu país. Em apenas quatro dias, os judeus conseguiram aumentar de 25 para 33 os votos “sim”. A resolução que criava dois novos Estados no Oriente Médio estava irremediavelmente aprovada.

Do outro lado do mundo, o silêncio da expectativa cedeu a gritos de satisfação e abraços. O povo judeu – que vinha migrando para a Palestina havia décadas, que fugira da miséria, das perseguições e do Holocausto – finalmente veria seu Estado nascer. Entre os árabes, no entanto, reinavam a tristeza e a decepção. O embate estava longe de acabar.

site:http://historia.abril.com.br/politica/partilha-palestina-435378.shtml

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