domingo, 12 de dezembro de 2010

Khmer: O império perdido


O naturalista francês Henri Mouhot não acreditava no que via. Em meio à densa selva asiática do Camboja, então parte da colônia francesa da Indochina, templos imensos, esculturas riquíssimas e um complexo sistema hidráulico apareciam a seus olhos – isso entre árvores, macacos, leopardos e insetos, muitos insetos. As construções, engolidas pela floresta, eram descobertas naquela missão de 1860, patrocinada pela Real Sociedade Geográfica britânica e pela Sociedade Zoológica de Londres. O mundo era apresentado, estupefato, ao Império Khmer, uma das maiores civilizações da Idade Média.

Entre os séculos 9 e 15, povos da etnia khmer (cerca de 90% da atual população cambojana) construíram um reino que até hoje surpreende os especialistas. Em seu apogeu, no século 13, ele dominou todo o Camboja até Mianmar, parte do Laos e quase toda a península da Malásia. Os khmer foram capazes de erguer uma megalópole de 1 000 quilômetros quadrados – se o leitor não consegue dimensionar isso, saiba que é algo entre o tamanho atual de Nova York e o de São Paulo (respectivamente, 500 e 1,5 mil quilômetros quadrados). A cidade de Angkor foi, até a Revolução Industrial, no século 19, a maior do mundo.

O fascínio que o Império Khmer exerce é tão grande que novas pesquisas não param de ser feitas. No ano passado, uma equipe, utilizando modernos radares e fotografias aéreas, descobriu que existiam pelo menos 94 templos na capital e outras 74 estruturas que podem ter tido a mesma finalidade religiosa. “As descobertas são fascinantes: elas confirmam que os khmer construíram uma riquíssima civilização”, diz o arqueólogo australiano Damian Evans, da Universidade de Sydney, líder da pesquisa.

O nascimento

Não há registros escritos sobre a história do Império Khmer, mas há inscrições em relevo em pedras e nos muros dos templos que ajudam a recontá-la. Por volta do ano 800, já havia pequenos principados khmer nas margens do lago Tonlé Sap, no interior do Camboja. A região ficava a uma distância segura das disputas travadas por duas antigas civilizações locais, os funan e os chenla (veja abaixo), que habitavam outras partes do país. Os javaneses, no entanto, brigavam constantemente com os khmer por causa de terras.

O negócio pegou fogo quando um jovem príncipe khmer, Jayavarman II, foi capturado pelos governantes da ilha de Java. Após alguns anos seqüestrado, o nobre conseguiu voltar para o Camboja. “Especula-se que tenha fugido de barco, mas não há registros confiáveis”, diz o jornalista italiano Stefano Vecchia, autor de The Khmer – History and Treasures of an Ancient Civilization (“Os khmer – História e tesouros de uma antiga civilização”, inédito em português).Pouco depois de Jayavarman II retornar, houve uma batalha, provavelmente naval, no golfo da Tailândia, da qual o príncipe saiu vencedor. Ele então unificou o reino e lançou as bases do futuro império. Uma de suas primeiras providências foi mandar construir uma capital, Hariharalaya, hoje desaparecida, perto do que mais tarde seria a impressionante Angkor. A cidade ficava no topo de uma montanha, local que, segundo a crença local, era onde moravam os espíritos e os deuses.

Os khmer passam a viver um período de glória. Em uma região que atravessava anualmente meses de seca por causa das monções, ventos terríveis que assolam a Ásia, os reis do século 9 perceberam que era fundamental criar um sistema de irrigação eficiente, que proporcionasse água o ano todo. Teve início, então, a construção de uma sofisticada rede de canais e reservatórios que permitiam a irrigação constante das plantações de arroz, o principal alimento da população – e a maior riqueza dos khmer. “Estava dado o pulo do gato”, diz o arqueólogo australiano Roland Fletcher, da Universidade de Sydney.

O primeiro grande reservatório, de quase 5 quilômetros quadrados e com capacidade para até 8 milhões de litros cúbicos de água – mais que suficiente para abastecer a cidade inteira e irrigar os campos de arroz –, foi construído por volta de 877 pelo rei Indravarman I. Ele aproveitou para expandir os domínios do reino, sem provocar muito alarde, até a fronteira com a Tailândia. Mais importante: o monarca desenvolveu o projeto inicial da gigantesca nova capital em um local ainda mais privilegiado – entre o lago Tonlé Sap e as montanhas, onde a água era mais abundante. “Foi uma escolha estratégica, que revela a inteligência dos governantes khmer”, afirma Stefano Vecchia. Mas Angkor não era apenas uma cidade colossal. Da tecnologia empregada nela derivou toda a prosperidade agrícola da planície cambojana – local que já era naturalmente irrigado, mas onde os níveis dos rios flutuavam muito. Controlados com o sofisticado sistema de lagos artificiais e canais, esses rios foram capazes de produzir solos com imensa fertilidade.

O sistema de águas de Angkor, controlado pelo rei, era encarado pela população com reverência religiosa. O rei passou a ser visto como um deus, já que era o fornecedor da divina água. Os diversos templos e palácios da capital do império foram levantados, assim, como expressão dessa devoção. Os primeiros templos construídos eram relativamente pequenos. Mas os khmer foram tomando gosto pelas megaconstruções. Angkor Wat é o maior exemplo disso. Erguido pelo rei Suryavarman II no começo do século 12, o templo é a obra-prima da arquitetura khmer. Com 1550 metros de comprimento por 1400 de largura, é rodeado por um fosso imenso. Sua posição, voltada para oeste e não para leste, como era comum, indica o possível uso que o monarca faria dele: seu templo mortuário – segundo a mitologia indochinesa, oeste é a direção para onde os mortos caminham.

Historiadores acreditam que Angkor Wat seja o começo do fim do império. Os esforços para a construção do templo teriam sido custosos demais para os cofres. E os valores normalmente aplicados no sistema de irrigação teriam sido desviados para o levantamento do santuário.

A recuperação

Depois da morte de Suryavarman II, a cidade foi saqueada pela primeira vez em 1177 pelo povo do reino de Champa, no atual Vietnã – que não via a hora de tirar seu quinhão dos ricos vizinhos. A invasão abalou a confiança dos khmer nas forças protetoras de suas divindades. O filho de Suryavarman, Jayavarman VII, subiu ao trono e herdou um reino despedaçado. Em 1181, conseguiu expulsar os inimigos. E, com mais de 60 anos, começou uma campanha para expandir as fronteiras do império. “Ainda não se sabe muito bem como ele as expandiu, mas deve ter a ver com a riqueza proporcionada por boas colheitas de arroz e o efeito-surpresa ao atacar os vizinhos”, diz o arqueólogo Fletcher.

Vencendo batalha após batalha, o Império Khmer dominou toda a Malásia, parte do Laos e de Mianmar. Num surto megalomaníaco, acreditando ser o maior dos reis khmer, Jayavarman resolveu construir sua própria cidade, Angkor Thom, a nova capital. No meio dela, ergueu o maior templo que os khmer já tinham visto, Bayon – e o dedicou não aos deuses hindus, como era costume, e sim a divindades budistas. Embora o budismo convivesse com o hinduísmo até então, ele nunca havia sido adotado como religião oficial. Os complexos sistemas de irrigação foram feitos também na nova capital.

Angkor Thom passou a ser um importante centro comercial, com chineses e indianos visitando o reino para comprar várias mercadorias. Os reis notaram que as mulheres eram boas negociantes e permitiram que elas ficassem encarregadas do comércio local (aliás, elas também ocupavam cargos importantes, como o de juízas, e trabalhavam nos campos de arroz ao lado dos homens). Vestindo um tecido colorido enrolado em volta da cintura, sem nada da cintura para cima, as vendedoras chegavam ao mercado local ao nascer do sol. Abriam suas esteiras no chão, dispondo em cima delas ricos tecidos e uma bebida alcoólica à base de arroz, além de grãos de arroz e jóias de prata. O centro comercial, em uma praça a céu aberto, só fechava no fim do dia.

Ao cair do sol, quando o rei decidia sair às ruas, muitas vezes era acompanhado por um séquito de funcionários públicos, concubinas e esposas carregando sombrinhas vermelhas. A praça principal e as ruas de Angkor costumavam ser tomadas pelo som de harpas e instrumentos de corda nessas ocasiões. O dia-a-dia do Império Khmer impressionava. Em 1296, o diplomata chinês Zhou Daguan visitou Angkor e escreveu um minucioso relato de 40 páginas sobre o rico cotidiano. “A cidade é cercada por um fosso que se cruza por pontes, algumas de ouro, e dentro dos portões há palácios e templos com torres douradas”, descreveu. O relato é considerado um dos documentos históricos mais importantes sobre os khmer.

A decadência

Essa vida idílica, porém, não duraria para sempre. Um dos problemas dos khmer é que eles não possuíam um sistema político bem-organizado – regras de sucessão ao trono simplesmente não existiam. O rei tinha inúmeros filhos, e qualquer um deles, não apenas o primogênito, poderia sucedê-lo. O resultado foram constantes brigas entre príncipes para chegar ao poder.

A falta de fontes de informação dificulta entender por que, de fato, o império chegou ao fim. É certo que no século 13 ele passou a ser mais atacado pela Tailândia e pelo Vietnã, e a cidade de Angkor Thom começou a ser saqueada com alguma freqüência. Em 1431, os tailandeses roubaram toda a capital e as lutas internas pelo poder no reino tornaram mais difícil uma união para vencer o inimigo.

Acredita-se também que a obsessão por dominar a natureza possa ter passado dos limites, com o sistema hidráulico acabando por provocar um enfraquecimento do terreno. Arqueólogos vêm encontrando sinais de erosão que comprovam perda de fertilidade do solo e excesso de desmatamento. Até o nível de um rio, o Siem Reap, pode ter baixado a ponto de torná-lo inadequado para irrigação. A hipótese mais provável é que tenha havido um colapso no sistema de abastecimento de água.

Terá sido essa uma das causas do fim do império? “É bem possível. Sem água e tendo de lutar contra inimigos, os khmer só podiam mesmo acabar entregando os pontos”, diz Fletcher. Abandonada, a rica Angkor aos poucos ia sendo dominada pela selva. A incrível civilização que os khmer construíram ao longo dos séculos, no entanto, não se perdeu. Quatrocentos anos depois, a saga recomeçaria a ser contada por exploradores e cientistas.

site:http://historia.abril.com.br/cotidiano/khmer-imperio-perdido-435905.shtml

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