quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

As mil e uma faces de Mao Tsé-tung


Praticamente todos os grandes ditadores do século 20 foram condenados pela história. Na Rússia, Stálin não passa de um espectro que poucos gostariam de reviver. Na Itália, quase não se vêem imagens de Benito Mussolini. E nem é preciso dizer o que aconteceria a um alemão se ele resolvesse vestir uma camiseta com a foto de Adolf Hitler. No caso do líder chinês Mao Tsé-tung, o julgamento parece ainda estar em aberto. “Apesar de milhões de chineses terem morrido durante seu regime, a imagem de Mao continua não apenas aceitável, como é considerada um ícone fashion em vários países do Ocidente”, escreveu recentemente Arthur Waldron, professor de Relações Internacionais da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, na revista americana Commentary. “Como os próprios chineses nunca o repudiaram totalmente, sua figura continua sendo fonte de legitimidade para o governo de Pequim.”


Com um PIB de 2,251 trilhões de dólares e expansão econômica de 9,9% no ano passado, o governo chinês parece mais preocupado em comemorar o (verdadeiro) espetáculo do crescimento do que em fazer uma revisão crítica do chamado “grande timoneiro”. No dia 9 de setembro deste ano, contudo, o 30º aniversário da morte do líder levantará novamente a questão: qual face de Mao ficará para a história? A do homem que conseguiu reerguer um império ou a do ditador responsável pela morte de milhões de chineses em planos megalomaníacos e assassinatos políticos?

Se depender dos chineses, tudo indica que ambas serão preservadas. “Desde 1979, eles parecem ter adotado uma fórmula própria para solucionar esse dilema”, diz o americano Jonathan Spence, professor de História da Universidade de Yale e autor de mais de uma dezena de livros sobre a China, entre eles, a biografia Mao. “Ele teria acertado em 70% dos casos e errado em 30%, sendo a maioria dos erros cometidos após 1958.” Antes disso, Mao já havia feito um milagre: transformou um país humilhado e em frangalhos em um império capaz de desafiar os Estados Unidos e ameaçar o posto da União Soviética como líder do socialismo internacional.

Diante da atual pujança chinesa, é até difícil imaginar que, há pouco mais de cem anos, o país corria o risco de sumir do mapa. Em meados do século 19, o velho império chinês havia virado uma colcha de retalhos: era controlado no norte pelos alemães, no centro pelos britânicos e no sudoeste pelos franceses. Nada menos que 50 portos chineses estavam nas mãos de estrangeiros. Além disso, o vizinho Japão logo se tornaria uma ameaça: em 1894, aniquilaria a Marinha chinesa e ocuparia a Ilha de Formosa (ou Taiwan) e algumas regiões no sul da Manchúria.

Foi nessa China subjugada que Mao Tsé-tung nasceu, em 1893, na aldeia camponesa de Shaoshan, ao sul do país. Aos 8 anos, a vida de Mao se resumia à escola primária e ao trabalho na pequena fazenda dos pais. Vivia confortavelmente, em meio à pobreza local. Aos 13, já adulto para os padrões da época, parou de estudar para trabalhar o dia inteiro na fazenda. Casou-se um ano depois, com a filha de um proprietário rural vizinho. Mas sua esposa adoeceu e morreu três anos depois.

Ninguém sabe até que ponto foi a viuvez precoce de Mao que o desviou do seu destino de proprietário rural. O certo é que, contrariando os planos do pai, ele retomou os estudos. Após ir a escolas das cidades vizinhas, onde teve contato pela primeira vez com os problemas da China, Mao partiu para Changsha, capital da província. Lá, se converteu à causa dos revolucionários do líder Sun Yat-sen. Mao, porém, nem teve tempo de colocar a mão na massa: a dinastia Qing, que controlava o país havia mais de 250 anos, foi derrubada por um motim de oficiais em 1911. Pu-Yi, o último imperador chinês, deixou o trono aos 5 anos de idade, em fevereiro de 1912.

Jovem idealista

A república que ocupou o lugar dos imperadores não conseguiu livrar o país do caos. Sem nenhum interesse em ver a China modernizada, Inglaterra, França, Japão e Rússia emprestaram dinheiro ao general Yuan-Shikai, que tomou o poder com a ambição de restabelecer um sistema imperial no país. Após a morte do general, em 1916, as províncias passaram a ser dominadas por senhores de terra despóticos e suas milícias privadas, que preservavam o poder na base da intimidação, tortura e assassinato. Mao presenciou em sua província soldados cortando a língua e arrancando os olhos de camponeses. Segundo seus biógrafos, essas cenas teriam feito com que ele, desde cedo, se convencesse de que seria ingênuo lutar pelo poder sem o uso da violência.

O cenário externo também não ajudava. Quando a Primeira Guerra Mundial chegou ao fim, em 1918, o Japão, que estava do lado dos aliados, tomou para si territórios chineses que eram controlados pela Alemanha. Além disso, adquiriu o direito de se intrometer nas políticas econômica e externa da China. Nessa época, o jovem Mao trabalhava na biblioteca da Universidade de Pequim, onde começou a ter contato com o marxismo e com os membros do nascente Partido Comunista Chinês.

Logo após Mao entrar no partido, os chineses foram orientados pelo Partido Comunista Soviético (que chegara ao poder com a Revolução Russa de 1917) a concentrar esforços junto aos trabalhadores urbanos. Por ter vivido a maior parte de sua vida em uma província rural, Mao não concordava com essa estratégia. Ele desconfiava das alas mais intelectualizadas do partido e preferia, desde o início, trabalhar para fortalecer as organizações rurais. Outra decisão do PC Soviético era de que eles deveriam se unir ao velho Partido Nacionalista de Sun Yat-sen, já que ele era a única organização com chances reais de tomar o poder e reunificar a China.

Inicialmente, o casamento deu certo. Juntas, forças revolucionárias dos dois partidos chegaram a conquistar várias cidades chinesas. Mas quando Chiang Kai-shek se tornou o líder dos nacionalistas, após a morte de Sun Yat-sen, em 1925, o crescente poder dos comunistas passou a ser visto como uma ameaça. Em 1927, Kai-shek detonou uma campanha de extermínio dos antigos aliados, prendendo e executando milhares deles. Em cidades como Xangai, o Partido Comunista praticamente foi varrido. O esmagamento dos operários só reforçou em Mao a convicção de que seu partido precisava dar mais atenção aos assuntos militares – é dessa época sua célebre frase de que “o poder político nasce do fuzil”.

Perseguido pelo governo, Mao organizou uma guerrilha de resistência nas montanhas do sudeste do país, onde ajudou a fundar uma base de resistência que ficaria conhecida como Soviete de Jiangxi. A seguir, ele organizou um exército e reprimiu com violência qualquer foco de rebeldia – e se viu cada vez mais indisposto com as orientações de Moscou, que insistia que a base de atividades dos comunistas se concentrasse nas cidades costeiras, não no interior.

Longo caminho

Em 1931, os japoneses ocuparam várias partes da China. Mas o governo de Kai-shek parecia mais preocupado em exterminar os comunistas do que em resistir ao invasor. Isso ficou evidente quando, em 1934, o Exército cercou o Soviete de Jiangxi. Sem opção, o Partido Comunista ordenou que as lideranças deixassem a base. Mao conseguiu fugir com seus seguidores, dando início a uma épica escapada. A Longa Marcha, como ficaria conhecida, durou 12 meses e deslocou milhares de chineses numa jornada de quase 10 mil quilômetros cruzando 18 montanhas, 24 rios e muitos trechos do deserto chinês (veja quadro na página ao lado). Dos cerca de 100 mil que partiram, perto de 8 mil sobreviventes chegaram a Yanan, no norte do país, onde fundaram um governo comunista. Enquanto o Estado oficial tinha o apoio da classe média urbana e de ricos chineses exilados, os revolucionários conquistaram as massas, tornando-se a maior força militar do país.

Sem condições de expulsar os japoneses, o governo resolveu pedir o apoio dos comunistas, que aceitaram a trégua. Com a derrota na Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Japão se viu obrigado a deixar a China. Isso pôs fim à aliança entre comunistas e nacionalistas e deu lugar a uma guerra civil. Kai-shek recebeu apoio americano, mas foi derrotado e fugiu com seus seguidores para Formosa. A essa altura, Mao já era uma lenda no país. Afinal, ele havia acertado na tese de que a revolução chinesa teria uma base camponesa e se tornara líder incontestável do partido. Quando os comunistas fundam a República Popular da China, em primeiro de outubro de 1949, ninguém tinha dúvidas de quem seria seu primeiro presidente.

A situação da China era catastrófica quando Mao assumiu o poder. Arrasada após décadas de guerras, a economia estava em pedaços. Não havia moeda unificada, a inflação havia saído do controle e as redes de comunicação estavam destruídas. Dois meses depois de criado o novo governo, Mao parte para Moscou para pedir o equivalente a 300 milhões de dólares em crédito – além de ajuda direta em infra-estrutura. Stálin, o líder soviético, concorda com quase todos os pedidos de Mao – a não ser o desejo de conquistar apoio militar soviético para invadir a ilha de Formosa e expulsar de lá Chiang Kai-shek.

Num prazo muito curto, Mao consegue reerguer a economia. Entre 1949 e 1956, os camponeses elevam sua produção de grãos em mais de 70%. Mas um programa de industrialização megalomaníaco logo provocaria uma das maiores catástrofes humanitárias do século 20. Tudo começou quando, em 1958, Mao decidiu que era hora de transformar a China numa potência industrial capaz de superar países como a Inglaterra e a própria União Soviética – cuja relação com a China havia se deteriorado desde que Nikita Kruschev chegara ao poder (Mao, apesar de independente, se entendia bem com Stálin).

Diante de uma população gigante e disciplinada e da certeza de que ninguém ousaria questioná-lo, Mao lançou o Grande Salto À Frente, obrigando milhões de chineses a abandonarem suas pequenas plantações de subsistência para trabalharem sem folga em fazendas coletivas e indústrias do Estado. Mas a utopia econômica maoísta, que incluía projetos para a produção de aço em miniusinas de quintal, teve um final trágico. Como diz o historiador Eric Hobsbawm no livro A Era dos Extremos, o Grande Salto terminou produzindo a “grande fome de 1959-61”, provavelmente a maior do século 20. Pesquisadores estimam que 30 milhões de pessoas morreram em conseqüência do delirante projeto. Mao reconheceu tarde demais os erros do plano – e a China acabou tendo que importar grãos do Canadá.

Linha dura pop

Em 1959, Mao foi substituído por Liu Shaoqi na presidência da China. Mesmo assim, manteve o controle do Partido Comunista – e continuou sendo a pessoa mais poderosa do país. Mas, em meados dos anos 60, o partido começa a sofrer uma divisão interna, com membros questionando a eficácia das políticas de Mao. Sob influência do revisionismo soviético contra a figura de Stálin, o culto à personalidade do líder chinês começa a sofrer críticas. É então que Mao lança um contra-ataque inesperado, que mergulha a China num período de violência. Com mais de 70 anos, ele se alia aos jovens para enfrentar os burocratas e o “revisionismo burguês” que, segundo ele, havia contaminado o partido. Milhões de jovens seguem seu apelo e dão início à chamada Revolução Cultural, cujo principal objetivo seria manter vivo o “espírito revolucionário”. Na prática, a Revolução Cultural se tornou uma espécie de inquisição comunista a todos os suspeitos de adotarem “hábitos burgueses”, o que levou milhares de pessoas à morte (veja quadro na página 36).

Na época, sua aliança com a juventude parecia trazer um sopro de renovação à esquerda mundial, cada vez mais cansada da fisionomia carrancuda do comunismo soviético. A imagem de Mao conquistou espaço nos pôsteres empunhados por estudantes na revolta de maio de 1968, em Paris, e também em quadros do artista pop americano Andy Warhol. E a coletânea de citações maoístas intitulada O Livro Vermelho tornou-se um manual não só para os jovens chineses, como para “revolucionários” de todas as partes do mundo.

No início dos anos 70, de novo com as rédeas do poder nas mãos, Mao abala o equilíbrio de forças da Guerra Fria e realiza uma inesperada aproximação com os Estados Unidos. Em 1960, a China havia cortado relações com Moscou, pois o governo soviético tratava o país como uma ameaça à sua supremacia no mundo comunista – e não como um aliado. Os chineses não podiam aceitar, por exemplo, que Moscou se recusasse a apoiar os projetos nucleares chineses – enquanto emprestava dinheiro para que a Índia, com quem a China havia tido conflitos de fronteira, pudesse desenvolver armas nucleares. Em fevereiro de 1972, Mao Tsé-tung recebe em Pequim Richard Nixon, o primeiro presidente americano a visitar a China.

Foi uma das últimas manobras internacionais de Mao (que ia de encontro aos velhos ataques ao imperialismo americano). Nesse período, ele também deu outro passo decisivo para o futuro da China, ao permitir que Deng Xiaoping, um dos líderes do partido que havia sido expulso durante a Revolução Cultural, pudesse voltar ao poder. Até então, ninguém poderia imaginar que Xiaoping seria o sucessor de Mao.

Em junho de 1976, Mao disse aos dirigentes do partido que sabia de sua morte iminente. Afirmou a seguir que havia feito duas coisas que de fato contavam: expulsara Chiang Kai-shek para a “ilhazinha” de Formosa e havia “pedido aos japoneses que voltassem para a sua terra ancestral”, numa alusão à expulsão deles após a Segunda Guerra. No dia 9 de setembro daquele ano, Mao morreu de ataque cardíaco. Seus últimos atos prepararam o terreno para que a China desse o seu verdadeiro grande salto, ao abrir seu mercado para o mundo. No ano passado, o país se transformou na quarta maior economia mundial, ultrapassando pela primeira vez a Inglaterra, como sonhara Mao – e ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Alemanha e Japão. Por enquanto.

site:http://historia.abril.com.br/politica/mil-faces-mao-tse-tung-434612.shtml

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